Recent Posts

sábado, 24 de novembro de 2012

De Crianças e Flores

Queria falar de flores, mas essas crianças palestinas não me deixam. Preparei o lápis mais macio e escolhi folhas muito alvas para merecer os floreios verbais que excedem em cores, forma e fantasia nesse quase verão. Nos últimos dias tivemos três estações, mas ainda é primavera, disse-me o lápis. “Acabo de assistir à terceira chuva e ainda não veio o segundo sol.” Fiquei com a frase entre os dentes. A Primavera Árabe em adiantado estado de decomposição, os cadáveres flutuam sobre um rio de gente e urros, uma dançante morbidade que os homens festejam e as mulheres choram. Os enterros parecem feriados nacionais, aqueles tiros para o alto, punhos levantados e a mesma frase: Alah é grande!

A manhã está calma, só as cigarras longe dos olhos, britam o desespero das horas na moenda da garganta. O dia promete ser quente, o sol reina, há azul por sobre as cabeças. Mas uma nuvem ronda o papel. No alpendre, pássaros raros, belos e canores alimentam seus filhotes. Em um único galho de jacatirão conto 473 botões, quantos serão em toda a floresta? Gastei alguns momentos a contemplá-los. Primeiro, abre uma flor solitária, depois as outras vão armando um rendado verde e rosa feito a ala das baianas da Mangueira. Verde e rubro, como a bandeira palestina, o lápis escreve sem pôr um ponto final à frase. Uma nação resumida a um pedaço de pano, ira e dor. Sua história é como um livro de perdas, mas a maior riqueza nacional palestina é a esperança. As jovens mães em Gaza e Cisjordânia aleitam seus filhos com o peito farto de angústia e uma fé a que se aferram: não alimentam comerciantes ou pastores, mas futuros mártires.

O novo livro de Wilson Gelbcke chega hoje à Livraria Midas, com histórias de flores, amizades e bicicletas. Casos ocorridos em Joinville, reunindo jovens e velhos, homens e mulheres em torno de existências longevas e tranquilas, a felicidade que se derrama por já não caber em si, como o caldo de açúcar queimado sobre um pudim de leite. Os melhores pudins da minha vida foram feitos pela minha sogra, Dona Dalva. Antes que o câncer a definhasse, passou uma última primavera diante desses mesmos jacatirões e levou um ramalhete deles quando fechou os olhos. As esplêndidas flores de antanho desabrocham toda manhã no jardim do coração, mesmo nas viúvas de Gaza.

Para finalizar esta crônica, já tinha escrito que a Palestina é uma causa perdida. Então uma aracuan, um pássaro grande, com 50 centímetros da cauda ao bico e o peito rajado em cinza como o turbante de Arafat, deixou a banana que lhe oferto na varanda, voou pela janela e pousou sobre o monitor do computador em que escrevo. Uma ousadia sem susto, sem medo, sem agressividade no olhar, a me dizer pela voz dos símbolos que a convivência é uma flor a ser regada, todos os dias, em qualquer estação.

Joel Gehlen - jornalista e escritor

Compartilhe