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quinta-feira, 29 de março de 2012

Outono

Como é triste o outono para o meu velho cão, que de tão antigo, já não se lembra mais de acordar as pernas e fica no mesmo lugar durante horas, até que vá lhe apanhar no colo, para higiene, comida, água ou simplesmente mudar a posição da pata. Como uma criança crescida precisa de cuidados para comer, beber, dormir, quer companhia, tem medo de escuro e só sabe ladrar uma queixa. Dezessete outonos estão empilhados nos seus olhos sempre úmidos, sempre súplices, sempre banhados no mais legítimo desejo de ser um cão simplesmente, dono da sua cauda, o pêlo sem vestígio, o olfato sem porteira.

Como é triste o outono depois de uma noite fria em que se dormiu mal, o peito chia o nariz freme. E pela frente, hora a hora, o inverno se aproxima como um exército de silêncio e acúleos que nos há levar para a definitiva geleira.

É triste demais quando a tarde cai e uma nuvem ainda criança vem brincar à soleira, fazendo deitar gotas frias do beiral, como se a casa inteira chorasse uma sentida saudade ainda desconhecida e que nos acompanha do fundo do quintal. Como é triste o outono quando cada pôr-do-sol parece-nos o último e já não estamos certos de que haverá outro dia.

Quão triste pode ser o outono na hora em que a tarde inclina sua sombra pela janela e pisa na cozinha vazia. Nenhuma voz, passos não há, sem lenha de fogão, sem chaleira com água para café, não se ouve mais aquela admoestação que é puro carinho na voz: Baco, deita no seu tapete. Como é triste ver o tempo passar, deslizando lerdo, inalterado e a mão da caridade já não se importa que ninguém venha nos bater à porta. O outono fica ainda mais triste quando o vento brinca lá fora, em rajadas infantas, gira em torno de si, corre pelas fendas, atravessa o meu caminho, sobe ao sótão pisando de mansinho, os pés descalços, vem olhar minha solidão sem rosto.

Talvez ele ainda me diga que há cães de sorte pior, que perambulam pela rua sem uma casa fria para outonar, que morrem de carro num dia ou de fome em todos os outros e que nunca sentiram a mão macia sobre o pelo do dorso. Como é triste o outono quando não se é mais nem a sombra da sombra do passado, quando corria pela casa, as patas curtas, a espinha longa, errando a curva deslizava pelo piso até espatifar-se no pé da mesa.

Hoje resta a ossama encarquilhada dentro da pele dura, o corpo é um monumento à dor, hospedaria de cãibras e reumatismos. A vida é um fiapo habituado a escombros, um costume alojado no seio de um velho cão que ainda têm fome quando o outono já veio.

O outono canta nos sinos e gira nos cata-ventos a notícia de que o humor morreu e a poesia se foi: como é triste o outono a cada pôr-do-sol quando ainda ficamos mais sós.



Joel Gehlen, crônica publicada no jornal A Notícia, no dia 28/03/2012

sexta-feira, 23 de março de 2012

Outono do meu tempo


Hoje é o primeiro dia do último outono de nossos dias. Outros haverá, é certo, mas até que cheguem, esse é o derradeiro. Então, vamos vivê-lo em cada desvão de dedos por onde a areia fina se desperdiça na ampulheta sem sono que resgata a duplicata de nossas horas. De grão em grão, passa uma vida inteira. O outono é uma festa sem polvorosa e se nos oferece como o pão e o sal para ressaltar o sentido e a energia que nos habitam até que o definitivo inverno se avizinhe, solerte e traiçoeiro. Os relógios de Sol giram mais céleres no outono, embora o coração, pela natureza da música, mantenha-se grave e compassado. No outono, Joinville nos cerca de um azul sem face, azul que é pura distância de outro lugar. Benditas montanhas de pedra e pluma que nos adivinham na solidão e nos velam para que não nos percamos no vazio sem fim que a abóboda do céu deixa cair sobre as noites ao luar, em plena plêiade dos naufragados.
O outono chega como um som de violoncelo, com uma gravidade que brinca em nossos ouvidos. O outono, mais até que a primavera, excessivamente contaminada pelo verão, é um momento de comunhão com a natureza, um tempo de caminhar e olhar o céu, seja noite ou seja dia. O outono é um descuido de Deus, uma janela entreaberta que nos apresenta o clima que o criador reservou só para os eleitos seus. Nada mais límpido, nada mais agudo, nada mais profundo e derradeiro que um dia de outono, pela sua densa luz, de uma coloração quente a depositar-se em nossa pele no arpejo doce de um beijo, cálido e arrepiante.
         O vento percorre as folhas das palmeiras e embrenha-se na mataria como um animal sem pele, uma serpente alada que enlaça e estrangula com violenta ternura e suave punhal de pétalas. E as folhas farfalham e se desmancham em movimentos com alegria e pânico como gestos de adeus. Como é triste o outono para quem perdeu o amor, com sua promessa de dias propícios a andar de mãos dadas ou demorar-se dentro de abraços apaixonados. Como é alegre o outono para as crianças de todas as idades que ainda brincam de “pique esconde” e correm e riem e gargalham sem as sufocações do verão.
         A tarde vem cair numa velha vasilha que deixo em pleno abandono ao meio do quintal, sem outra astúcia que estar disponível às disposições do tempo. Verte-lhe a luz como finíssima névoa dourada que dá de beber aos olhos sem ousar se deixar tocar. Uma bacia banhada em luz da tarde de outono é um inutilitário, não banha o rosto nem lava as mãos, mas purifica-me o seu olor de mirta, intenso como os banhos de Istambul em permanente repasto par os poetas: “Na abóbada da tarde cada pássaro é um ponto de recordar...”




Joel Gehlen



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