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sexta-feira, 14 de dezembro de 2012

À minha próxima namorada


Haverá entre nós uma atração, de certo que sim. Mas devo avisar que as paixões arrebatadoras me parecem mais com peça de museu do que com nova experiência. Aprendi a amar um amor tranqüilo, que gosta e repousa, sem a sofreguidão dos amores juvenis. Mas tenho cá dentro, uma chamazinha marota capaz de aquecer uma noite inteira e anos a fio. Não, minha amada, não sou mais da noite. Deixei de perseguir a lua porque descobri a beleza das manhãs e da promessa de um novo dia inteiro.
Quando depois do gozo, eu fechar os olhos não é para sonhar com o futuro, mas para repousar no presente que me embala. Não lhe amarei com desespero, nem meu prazer será medido em quantidade, mas conheço atalhos de sedução que você mal poderá acreditar.
Quero sua companhia. Quero preparar e tomar ao seu lado um bom café com frutas, uma bandeja e à brisa de manhãs outonais. Sim, meu anjo, o outono ficou mais interessante do que o verão nos últimos anos.
A música, companheira infinita, que eu já usei para diversão, ouço agora com sentimento. E quando andarmos na rua, meu bem, não me extasiarei mais com carros ou motos do que com uns móveis ou com o sapato infantil que um dia calçará nosso filho.
Se quiser me acompanhar, você terá que me ouvir falar de meu time de futebol, que é paixão anterior a você, mas sempre que eu precisar escolher, a bola estará em seus pés.
Meu ciúme é sim fruto da insegurança, mas minha insegurança não nasce da baixa auto-estima, ela nasce do desejo de não lhe perder, porque você há de me fazer bem.
Todos os meus defeitos estão mais visíveis, minhas qualidades também. Minha fidelidade a você será antes de tudo, fidelidade aos meus sentimentos. Por isso, traição pode ser algo distante de nós dois, mas quero que você me conquiste diariamente, surpreenda-me, desperte-me, seduza-me.
Quero que você cuide de seu corpo sem obsessão, mas que cuide de seu corpo. E do meu. Escolha minhas roupas e os programas, mas permita-me não perder a individualidade. Não fume se possível, beba mais um gole se possível. Arrume nossa casa, invista em sua carreira profissional, mas não se entregue demais ao trabalho.
Não caia aos meus pés, mas não oculte sua dependência de mim. Dê-me e peça-me colo. Saiba dizer não, mas não deixe de dizer sim... Ou talvez, que um bom talvez traz mistério e incita desejos. Incite desejos, realize os meus.
Por fim, namore-me pra lá das alianças, até o fim.

Jura Arruda - escritor

sábado, 24 de novembro de 2012

De Crianças e Flores

Queria falar de flores, mas essas crianças palestinas não me deixam. Preparei o lápis mais macio e escolhi folhas muito alvas para merecer os floreios verbais que excedem em cores, forma e fantasia nesse quase verão. Nos últimos dias tivemos três estações, mas ainda é primavera, disse-me o lápis. “Acabo de assistir à terceira chuva e ainda não veio o segundo sol.” Fiquei com a frase entre os dentes. A Primavera Árabe em adiantado estado de decomposição, os cadáveres flutuam sobre um rio de gente e urros, uma dançante morbidade que os homens festejam e as mulheres choram. Os enterros parecem feriados nacionais, aqueles tiros para o alto, punhos levantados e a mesma frase: Alah é grande!

A manhã está calma, só as cigarras longe dos olhos, britam o desespero das horas na moenda da garganta. O dia promete ser quente, o sol reina, há azul por sobre as cabeças. Mas uma nuvem ronda o papel. No alpendre, pássaros raros, belos e canores alimentam seus filhotes. Em um único galho de jacatirão conto 473 botões, quantos serão em toda a floresta? Gastei alguns momentos a contemplá-los. Primeiro, abre uma flor solitária, depois as outras vão armando um rendado verde e rosa feito a ala das baianas da Mangueira. Verde e rubro, como a bandeira palestina, o lápis escreve sem pôr um ponto final à frase. Uma nação resumida a um pedaço de pano, ira e dor. Sua história é como um livro de perdas, mas a maior riqueza nacional palestina é a esperança. As jovens mães em Gaza e Cisjordânia aleitam seus filhos com o peito farto de angústia e uma fé a que se aferram: não alimentam comerciantes ou pastores, mas futuros mártires.

O novo livro de Wilson Gelbcke chega hoje à Livraria Midas, com histórias de flores, amizades e bicicletas. Casos ocorridos em Joinville, reunindo jovens e velhos, homens e mulheres em torno de existências longevas e tranquilas, a felicidade que se derrama por já não caber em si, como o caldo de açúcar queimado sobre um pudim de leite. Os melhores pudins da minha vida foram feitos pela minha sogra, Dona Dalva. Antes que o câncer a definhasse, passou uma última primavera diante desses mesmos jacatirões e levou um ramalhete deles quando fechou os olhos. As esplêndidas flores de antanho desabrocham toda manhã no jardim do coração, mesmo nas viúvas de Gaza.

Para finalizar esta crônica, já tinha escrito que a Palestina é uma causa perdida. Então uma aracuan, um pássaro grande, com 50 centímetros da cauda ao bico e o peito rajado em cinza como o turbante de Arafat, deixou a banana que lhe oferto na varanda, voou pela janela e pousou sobre o monitor do computador em que escrevo. Uma ousadia sem susto, sem medo, sem agressividade no olhar, a me dizer pela voz dos símbolos que a convivência é uma flor a ser regada, todos os dias, em qualquer estação.

Joel Gehlen - jornalista e escritor

quinta-feira, 18 de outubro de 2012

O livro das felicidades

As estradas rurais da minha infância, de terra vermelha e barrancos elevados, eram espaços mágicos. Gastava horas inteiras sentado sobre a velha porteira, o olhar cheio de espanto para o caminho que surgia depois da primeira curva. Uns urubus voando no céu enquanto pombos e maritacas vindos do potreiro punham-se no sem fim da mata. Dela poderiam surgir preás, nhambus, lagartos e cobras. Até algum esquivo macaco nas copadas da ribeira. Distrações passageiras, o infante querer dedicava-se inteiro ao que pudesse surgir do além da curva da estrada.

Nesse cineteatro desenrolavam-se dramas e aventuras que o coração conviveu palpitante e que a memória juntou como um maço de gravetos sem saber bem onde guardar. A sonoplastia feita de pássaros próximos, mugidos ao longe e um cão que late incerto, quiçá do outro lado do mato onde o ouvido alcança os dedos da imaginação. A figuração do vento está por todos os lados, campeia no chão, bole nas árvores e varre no céu distinto engalanado de azul. Há um zunzum de moscas e abelhas que nunca soube se estavam no roteiro ou foi um furo da produção. Pairando sobre tudo, age um silêncio, uma lentidão, uma densa expectativa que faz o espetáculo começar.

Galos! Infames, galos. Quase põem tudo a perder, que gargantas mais renitentes, alguém pode cala-los? Melhor dar-lhes um papel. Ébrios da madrugada, alongam a garganta intumescida de sol como se lhes dependesse do canto a sustentação do próprio dia. Tem ainda a tristeza desses sabiás, mais afinados, é claro, mas igualmente incontidos, desde que furam com o bico a primeira réstia de luz na barra do horizonte até que se finam crepusculares, num voo rasteiro por baixo da saia dos laranjais.

E quando a primeira cena enfim vai começar, um tapa estala fazendo eco na mataria, três ou quatro muriçocas esmagadas debaixo da palma da mão fazem brotar pontinhos de sangue e coceira na barriga da perna desprotegida pela calça curta. As mãos ágeis evitam outras picadas, mas, inebriado no êxtase da primeira aparição, abandona sua carne ao banquete dos insetos.

O ouvido do lado que o vento sobra denuncia o ronco de um motor. Instala-se a primeira angústia: aproxima-se ou se distancia? É como um rádio mal sintonizado, ora claro, ora longe. Agora é nítido, cada vez mais perto, capta o radar cardíaco. O que será? De onde vem, para onde vai? Leva um doente? Uma criança com pneumonia? Os instantes que antecedem a curva da estrada são intensos e demorados. Quando enfim surge em cena aberta, corta a tela numa diagonal flamejante um fusquinha 68, azul celeste levantando uma nuvem de poeira que o faz sumir tão logo aparece. Lentamente o pó vai assentar-se nas folhas da encosta, umedece no suor que poreja o rosto do menino e amarra um gosto de terra na garganta aberta de espanto.


Joel Gehlen - escritor
letradagua@gmail.com

sexta-feira, 12 de outubro de 2012

A última tentação de Ulysses

Amanhã, se completam 20 anos do desaparecimento de Ulysses Guimarães nas águas azuis do mar de Angra dos Reis. Devemos muito do Brasil que temos hoje às suas virtudes e ao seu papel, não apenas no enfrentamento à ditadura militar e no restabelecimento da democracia no Brasil, mas, principalmente, na elaboração da “Constituição Cidadã”, de 1988. Ela é o principal artífice que vem permitindo o desenvolvimento contínuo do País em todos os campos, do econômico à inclusão social. De todos os personagens públicos brasileiros no último meio século, ele é o que mais fez pela construção da realidade de que desfrutamos hoje.

Ulysses não teve apenas o nome de herói grego, mas viveu uma trajetória à altura dos grandes mitos. A exemplo do personagem de Homero, teve uma vida de provações, enfrentou forças monstruosas e resistiu ao canto sedutor das sereias. Com ele, foram colocados à prova alguns dos princípios do ser humano. Honra, justiça, fidelidade, caráter, solidariedade, generosidade, desapego, entre outros, são valores provados e fortalecidos nas vivências de Ulysses Guimarães.

Como só ocorre com as grandes figuras mitológicas, Ulysses trilhou um caminho solitário. Embora sempre rodeado por bons companheiros – entre eles um de Joinville – e da onipresença de dona Mora que, a exemplo de Beatriz, foi sua companheira inclusive na senda da morte, Ulysses viveu a mais dramática das solidões: a de estar só entre as gentes. Por mais que partilhasse e acolhesse conselhos, suas decisões exigiam dele o sacrifício de se saber o único responsável.

A vaidade é o pecado preferido do diabo, põe a perder o homem comum e, em especial, é a perdição das figuras públicas. Mãe da ambição, da arrogância e das injustiças, leva-nos a trilhar caminhos atrozes para atingir o fim que lhe justifica. Justamente nesse ponto nevrálgico Ulysses enfrentou – e venceu – sua maior tentação. Durante os Anos de Chumbo, foi o quixotesco anticandidato no jogo perdido do Colégio Eleitoral que elegia os presidentes ditadores. Estabelecidas as condições para vencer nessa arena que tantas vezes o derrotou, abdicou da vitória em favor de Tancredo Neves; com a morte de Tancredo, a cadeira presidencial estava em suas mãos, bastava assumi-la, não o fez.

Restabelecido o voto direto, bebeu o cálice amargo do abandono, seus companheiros – salvo honrosas exceções – o trocaram por 30 moedas de poder. Deposto Collor de Mello, a faixa presidencial voltou a flertar com o velho guerreiro, no entanto, no dia da Padroeira de Aparecida e das crianças, ele foi ao encontro do seu destino no abismo de azul e sal. A glória do seu legado não é a resistência aos militares, mas as sucessivas renúncias à vaidade. Para ele, não havia outro poder senão o seu sonho de poder.

Joel Gehlen, jornalista


sexta-feira, 14 de setembro de 2012

Uma cilada para a memória

Estive em Londrina depois de alguns anos sem voltar à minha cidade de formação. Vivendo há 17 anos em Joinville, ainda me confundo, às vezes, dizendo “aqui em Londrina...”, tanto aquela cidade de chão vermelho está entranhada nas veias, embora já tenha mais tempo de vida aqui do que lá. Enchi o porta-malas de livros – Vanessa, Karl, Manoel de Barros, Leskova, Taques, Selbach, dentre outros – e dirigi 600 kms para participar do Londrix, o Festival Literário de Londrina. Seis horas de solidão e estrada são mais que suficientes para dar a volta ao mundo entre o retrovisor e o para-brisa. Tempo de sentir e refletir que faz do homem que chega outro, distinto daquele da partida. Quanto mais avançava nos quilômetros, mais retrocedia no tempo.

Vencido o tenso caminho da serra e o intenso trafego que só arrefece além das de cercanias de Curitiba, a viagem se bifurca: o carro segue pelo asfalto e a alma percorre uma paisagem inventada com as tintas da memória e pinceladas da estrada. Os trigais acesos de outono no ápice da colheita fazem-me companhia dos dois lados da janela, desde os campos gerais de Ponta Grossa, seguindo pelo Terceiro Planalto ao encontro da serrinha de Ortigueira, lixa a limar a pedra bruta da esperança até a última poeira do caminho. Os tons de espigas secas, rútilos trigais de Van Gogh, se intensificam nos arrebóis londrinos. O céu apunhalado por um sol em seu ocaso derrama sangue na horizontina, e dois tons de vermelho valsam entrelaçados no crepúsculo que desce sobre as terras roxas tombadas para as semeaduras de Primavera.

Adentro Londrina naquele momento em que a primeira estrela vai refletir-se no vidro da janela, mas “acendem-se de súbito os postes de iluminação”. Acolho a cidade feito um abraço, sento-me no cordão do calçamento e pouso o dedo sobre seu pulso. Palpita por um fio tênue, ou será minha ansiedade que a põe em desalinho? Caio na multidão, ando a pé, desço a rua, subo o Calçadão, aturdido como se procurasse uma criança perdida. Parece-me outra cidade que não aquela que habitei e que ainda me habita. O ambiente é árido, não há mais os quiosques, as bancas de jornais, o pregão dos vendedores de bilhetes da loteria, não há mais. Que é feito dos meninos engraxates, que davam um lustre no sapato fazendo samba na caixinha?

Todas as pessoas pareceram que estão do outro lado de um vidro. “O que fizeram de ti, Londrina?”, ponho-me a perguntar. Custo a aceitar que a cidade espelha o outro que a observa, se parece tão estranha porque já não sou o que fora dantes. E o homem que caminha pelas suas ruas está 20 anos distante da sua mocidade.


Joel Gehlen - Escritor

terça-feira, 11 de setembro de 2012

Outras notícias de Primavera

Noites. Cheia de mistério e encantamento a rara lua azul, no último ciclo de agosto, depositou um beijo demorado na face da noite. Louça frágil, moça ousada, boiando na retina incandescente da Babitonga seu lírico cristal de espanto. Para além da beleza ou poesia desse instante, o ovário-firmamento de um Deus oculto insinua insondáveis imensidões em que se misturam noite e leite. Não há rastro nem pressa em seu caminho. O mesmo vazio a precede, evolve-lhe as ancas túmidas e a sucede. Um nada único e absoluto.

Cansado de interrogar o céu sem obter resposta, o homem que olha a lua azul do último agosto gasta os braços envolvendo um demorado abraço sobre seus dois pulmões oprimidos dentro do peito. O coração em pororoca desemboca um preamar sanguíneo dentro das veias, dilata-se atiçado como se houvesse decidido expandir-se até plasmar-se à branca nua que atravessa a testa do horizonte sem nuvens que lhe ponham um véu de tule sobre as espáduas torneadas. No lajedo, lagartas e mandorovás arrastam-se açoitados pela luz noturna e corrosiva, abandonam as folhas carcomidas das couves, dos tomateiros, e fogem para os breus dos vãos, enclausurando-se à quietude acuada dos casulos.

Tardes pairam sobre a tarde que cai e uma névoa camufla de giz sobre as cabeças. Suas gotículas umedecem a roupa no varal e se liquefazem arriba dos telhados fazendo os beirais deitarem grandes lágrimas frias na paisagem. Plúmbeas horas sem nome, que o relógio não dá conta de marcar, tocam-nos o obro como se fora o primeiro degelo de Primavera nesse frágil setembro sem plumagem.

Folhas ressequidas à soleira brotam um desconsolado adeus no crepúsculo do Inverno. Varridas pelo vento, riscam na pedra chã o coro lamentoso do corvo: “Nunca mais, nunca mais...”. E o eco que carrega com a palavra “mais” se degrada no ar enchendo os olhos de ais até que se deponham no roxo cardinalício dos ipês floridos em pencas, no bordejo de um luto sem pesar. Em estado de total quietude, o casulo falseia a morte. Então, desavisada, sem outro mote que a seda fina do mistério, avulta a asa ainda inerte vazada em vívidas cores na pela opaca da tarde cinza cintilante. O lento despertar da primeira borboleta de setembro ativa o coração da primavera, seu voo inaugural é irregular e claudicante, eleva-se ao sabor do vento, para além de onde a vista testemunha o milagre de arribar-se.

A manhã chega na arrebentação das orquídeas chuva de ouro, bem antes do Sol nascer, e se alastra nos ipês amarelos incrustando seu fulgor bíblico pelos caminhos da terra.


Joel Gehlen - escritor

quinta-feira, 26 de julho de 2012

Dia do Escritor

Poderia escrever a crônica mais triste nesta quarta-feira de plúmbeo frio que atravessa a pele e além. Talvez devesse repetir ao infinito o verso da canção desesperada, como as vagas impacíficas de Isla Negra, e sofrer uma perda até o fim dos séculos e séculos. No entanto,
restam-me estas mãos que um dia lavraram a terra e agora oficiam a luta vã, estes olhos e ouvidos, estes sentires que peguei na infância quando se adoece de todos os males. Tive caxumba, sarampo e meningite, tive prego enferrujado atravessado no pé como na crucificação, passou-me as noites com unguentos e chás rezas, minha mãe. Não gangrenou. Tive a canela atravessada pelos dentes da serra de cortar cerne, ficou a cicatriz medonha, como no alto da coxa, beliscada por uma cobra d’água. De tudo livrou-me a zelosa mãe e as irmãs tão cheias de cuidados e carinhos. Depois veio a bruta dor pneumônica, baixei no
hospital São Pedro de Mamborê:

– Dói?

– Não, mãe, só quando respiro.

E seus dedos calosos de lavradora colhiam os suores na infanta testa. Até a epilepsia se foi sem deixar vestígio. Mas essa moléstia maior, esse cancro, essa metástase crua alastrou-se por todas as maneiras que há de ser, sentir e estar no mundo. Dela não há refúgio, não há pausa, nem o Emplastro Sabiá me salva dessa dependência cancerígena de escrever. Deus, onde foi que a infecção começou? Doença mal curada na infância, correi feito cupim, sou apenas essa casca de gente que se vê por fora, o resto é o vazio de ser o que se escreve. A vastidão sem fim do nada, as palavras ditas em um museu de cera, para ninguém.

Acúleos da escrita chovem na aguda solidão sem esperança e búfalos bufam patadas no estômago, só uma borboleta repousa plácida sobre a fúria. Os olhos do mundo se voltam para ela sem dar vista ao tropel, disparada indimensionável de chifres negros. O Karl envia-me essa esta contradita: minha única riqueza é o ato de escrever, por isso escrevo tanto, pra não minguar no deserto da mais rude loucura. Estou num exílio danado, contudo sei que meu maior desterro foi ter acompanhado, minuto a minuto, o escoar para o vazio do mais singular dos seres. Depois que a vó Ana foi sepultada, todos foram tomar sorvete e eu, taciturno, refiz um caminho que fazíamos durante anos e, de uma janela da praça da Matriz, vazava uns acordes da Quinta de Beethoven. Sentei no cordão da calçada onde, desde então, continuo sentado, na tentativa de escutar outra vez.

A loucura é, sendo escravo, empenhar-lhe tanto esforço, espírito e astúcia, dedicar-lhe tudo aquilo que não temos para mais nada: vida que se consuma na danação de depor palavras sobre o éter.

Enquanto dedilho esta crônica, com os músculos em dor de outras escritas, penso na frase do Wilmar Sassi: Escrever é praga de mãe.

Nunca cessa e os astros, assaz distantes. O resto é silêncio.


Joel Gehlen

terça-feira, 24 de julho de 2012

Tatiana Leskova


segunda-feira, 23 de julho de 2012

Palco da Sagração


sexta-feira, 13 de julho de 2012

UR-CANTO A PALO SECO

Sem o ar na caixa torácica do homem,
a água corrente cessa
e o dente-de-leão seca.
Sem a água nas veias do homem,
a floração do arco-íris branco míngua
e o pote quebra.
Sem a música nos nervos do homem,
nada de aragem na esquina
e o bonsai murcha.
Sem o cérebro acima do pescoço do homem,
só há o horror da página branca.
Sem o amor, o fogo do homem torna-se imundo
e os lagartos mordem a própria língua.
Sem os acordes a palo seco de uma viola flamenca,
unicórnio, espírito santo e o Ur-canto inexistem.

Sem estrelas nem vendaval a noite é apenas escura.

O vendaval,
mesmo sem os acordes a palo seco de uma viola flamenca,
o vendaval,
numa rasante que encurva as árvores,
o vendaval é o único que existe.

Fernando José Karl

quinta-feira, 12 de julho de 2012

A falência do indivíduo


Em meados do terceiro século AC, os romanos haviam dominado toda a península itálica e lançaram-se à conquista da Sicília. A ilha, então, era dos cartagineses, que dispunham de ampla vantagem de tropas e armas em terra, também eram os senhores do mar, contando com numerosas embarcações, muito bem equipadas e pilotadas por experientes marinheiros. Já os romanos lutavam com ferocidade no campo, mas eram nulos nas batalhas navais. Mesmo assim, nos 14 anos de guerra que se seguiram, aprenderam a arte da marinharia e derrotaram os cartagineses sucessivamente em todos os ambientes, tomando-lhes as possessões da Sicília, Sardenha e Córsega, e o domínio dos mares, chegaram a desembarcar na costa da África pondo em perigo a própria Cartago. Nessa ocasião, um mercenário de origem espartana foi contratado para fazer frente aos invasores. Imediatamente ele diagnosticou a origem das derrotas nas estratégias equivocadas dos comandantes e não na fraqueza das tropas. Sob o seu comando, os cartagineses lograram impor uma primeira vitória aos romanos.

Essa passagem, relatada com minúcia por Políbios, no livro “História”, fez-me lembrar do quanto nosso destino está atado ao daqueles que nos lideram. Assim, ofereço-a como forma de reflexão para o momento político que vivemos. Desde os remotos tempos das cavernas, quando o homem tornou-se gregário para melhorar a proteção, conseguir víveres e sobreviver, que o indivíduo deixou de ser dono absoluto de seu destino. Uma incômoda parcela do nosso êxito pessoal depende da capacidade de nossos líderes, quer gostemos deles ou não. Agora é o tempo em que podemos fazer alguma coisa por nós. Após as eleições, as influências pessoais serão mínimas.

O mais desastroso em ser representado por um falso líder é que os efeitos mais pernósticos das suas decisões têm efeito retardado. Podemos sofrer durante anos, uma geração inteira, uma vida inteira, em função do que um sujeito fez ou deixou de fazer em nosso nome. Quase tudo que você é e tudo que você tem, o que você come, veste, a maneira como se locomove, e mesmo as ferramentas fundamentais para a percepção do mundo, adquiridas na educação, dependem desses sujeitos. Até o tempo de vida e a qualidade dela, está nas mãos deles. No entanto, não temos tempo para eles, os vemos com escárnio, repulsa e desprezo, como se fossem todos vigaristas prontos a nos enganar. Mal os suportamos na campanha e vamos votar por força da obrigação. Não se engane dizendo que o brasileiro é assim, pois o mundo está desse jeito, está em crise de representatividade, sofre fatal fragilidade das lideranças. E quando os representantes adoecem, a falência é do indivíduo: eu e você.
Joel Gehlen, escritor e jornalista

quinta-feira, 28 de junho de 2012

Irresistível solidão



Nem sabia que a dor da solidão pudesse ser assim tão doída. Um doer a que não se resiste mesmo sendo o mais estoico dos seres. É uma lição a mais que aprendo. Ele também me ensina que ser paciente nos mantém vivos e, mais do que isso, que a vida vale a pena, por mais distante que estejam os dias dourados, por mais sofrida que seja a vida que se leva, por mais humilhante que pareça a sua condição. Todo dia aprendo que, com ele, um instante a mais de vida é uma dádiva, e por mais íntimo que a gente esteja da morte, não é a ela que se deve esperar, nem combater com desesperos e palpitações exageradas.


Na sua avançadíssima idade, ele abriu mão do que nos orgulharíamos tanto em chamar de dignidade – especialmente masculina – e também de qualquer prurido com relação ao corpo. Não há tabus mistificatórios, desde que essa velha máquina lhe permita manter a sensação de aconchego. Gosta de ouvir tevê, e sente-se bem se há música por perto. Com as pernas paralisadas há dois anos e sem força nos braços, só consegue mover-se à medida que apoia a cabeça no chão. Assim, permanece quase que na mesma posição há 730 dias, 17.520 horas. Longas horas em que não há absolutamente nada a fazer a não ser alternar períodos de sono e de vigília. Precisa de ajuda para comer e beber, necessita ser trocado e higienizado três vezes ao dia. Amiúde busco sinais de desistência em seu semblante. Não há, ele continua apegado à vida, crente na vida, sem avidez, mas com tenacidade.


Como não tem mais voz – apenas pode gemer – guarda nos olhos toda a expressão. Com o tempo passei a distinguir: olhos de fome, de frio, de desconforto. Mas nunca de angústia ou medo ou dor. Tem os olhos negros, fundos, encravados nas encovas como se lhe boiassem dois poços na testa. É preciso limpá-los com cuidado. São dois lagos de ternura, meigos e indefesos. Mergulhados em silêncio, guardam uma mansidão quase bovina. Neles se fez tudo que expressa, tudo que diz, refúgio derradeiro da esperança nesse corpo já tão adentrado nas sendas da noite grande.


Com a barriga coberta de escaras, a coluna e o peito deformados pelo esforço de manter-se numa única posição, com os ossos lhe esticando a pele como num curtume de Soledade, a dor não lhe dá trégua. Mas ele de nada reclama, nem de fome, frio ou sede. Só há uma inconveniência que lhe suplanta o estoicismo: a solidão. A sensação de silêncio e vazio arranca-lhe gemidos e queixas. Abdicou de todos os confortos sem lamentos, nada quer e nada tem, seu único bem é saber-se em companhia de quem quer tanto bem.


Joel Gehlen - Jornalista
letradagua@gmail.com

quinta-feira, 5 de abril de 2012

Carta para Suzana

Querida Su, escrevo desde a outonal Joinville para desejar que retornes. Para contar que pessoas queridas velam pelo teu restabelecimento, para que estejas de volta com tua parcela de inteligência, afeição e ironia, que anima, alivia e ilumina a convivência de todos que a amamos tanto. Quero dizer que qualquer vida, por mais plena, é sempre infimamente menor do que a vida que desejaríamos ter. Vivemos todos em enorme defasagem diante dos nossos desejos. O corpo, minha amiga, diferente do que costumamos dizer, não é uma máquina perfeita, você bem o sabe, é frágil e inapto quando comparado à nossa dimensão intangível. É realmente desproporcional um conjunto tão fatigado de órgãos ser abrigo e agente de tudo que o cérebro é capaz de conceber e sentir.

Sei que dizer assim fica mais fácil quando se está com as fragilidades em ordem: mãos que pegam, pés que sustentam, pernas que levam, boca que diz e bebe e come. Mas todos os dias invade-me a horda errante e corrosiva da angústia, destruindo meu refúgio e incendiando os trigais da esperança. Horas há em que cambaleio e me abandono, e me desespero roído pela dúvida e emparedado pelas certezas. Então ouço meu pai, pela voz da irmã Neide, a dizer-me: onde você está não quer dizer nada, nunca esqueça de onde você veio, só assim vai perceber o seu trajeto e quão longe foi.

Querida Su, a voz sua nos diz na secretária eletrônica para deixar um recado, mas o gravador está cheio. Palavras próximas e distantes em mensagens apreensivas por ti, transbordando de afeto e carinho a casa vazia no terceiro andar da rua Oliveira Rocha. Posso ouvi-las ressoarem no apartamento repleto da sua presença nos muitos livros, discos e fotografias. As viagens, amigos e a carreira refletem-se nas paredes, em imagens e cores às quais a moldura da estima confere um aspecto de vaidosa saudade.

Tudo lhe aguarda a postos, para a rotina de um novo dia. Os pesados janelões querem se abrir para trazer a pedra do Cantagalo, do outro lado da Lagoa Rodrigo de Freitas, como se fosse o fundo do seu quintal. As plantas na varanda contam os minutos no relógio do sol, aflitas pela sua presença com água, carinho e cuidados. A noite cai e a brisa do mar lá do Leblon e Ipanema tangem dedos delicados com os tons mornos de um verão que reluta em dar passagem às aragens de abril. Do Corcovado, o Cristo espalma sua mão direita sobre nossas cabeças no Jardim Botânico, depois, cobre-se com um manto de névoa mística que o faz ascender ao céu como se cada dia fosse o terceiro da ressurreição.

Querida Su, na impossibilidade de margaridas silvestres, dedico-lhe a flor singela dessa escrita. O Ely, a Rose, a Wil, a Silvia, o Edson, a Albertina, o pessoal do festival e lá do Prinz aproveitam para também mandar lembranças e reforçar os votos que todos comungamos.



Joel Gehlen - publicado no jornal A Notícia no dia 04/04/2012

quinta-feira, 29 de março de 2012

Outono

Como é triste o outono para o meu velho cão, que de tão antigo, já não se lembra mais de acordar as pernas e fica no mesmo lugar durante horas, até que vá lhe apanhar no colo, para higiene, comida, água ou simplesmente mudar a posição da pata. Como uma criança crescida precisa de cuidados para comer, beber, dormir, quer companhia, tem medo de escuro e só sabe ladrar uma queixa. Dezessete outonos estão empilhados nos seus olhos sempre úmidos, sempre súplices, sempre banhados no mais legítimo desejo de ser um cão simplesmente, dono da sua cauda, o pêlo sem vestígio, o olfato sem porteira.

Como é triste o outono depois de uma noite fria em que se dormiu mal, o peito chia o nariz freme. E pela frente, hora a hora, o inverno se aproxima como um exército de silêncio e acúleos que nos há levar para a definitiva geleira.

É triste demais quando a tarde cai e uma nuvem ainda criança vem brincar à soleira, fazendo deitar gotas frias do beiral, como se a casa inteira chorasse uma sentida saudade ainda desconhecida e que nos acompanha do fundo do quintal. Como é triste o outono quando cada pôr-do-sol parece-nos o último e já não estamos certos de que haverá outro dia.

Quão triste pode ser o outono na hora em que a tarde inclina sua sombra pela janela e pisa na cozinha vazia. Nenhuma voz, passos não há, sem lenha de fogão, sem chaleira com água para café, não se ouve mais aquela admoestação que é puro carinho na voz: Baco, deita no seu tapete. Como é triste ver o tempo passar, deslizando lerdo, inalterado e a mão da caridade já não se importa que ninguém venha nos bater à porta. O outono fica ainda mais triste quando o vento brinca lá fora, em rajadas infantas, gira em torno de si, corre pelas fendas, atravessa o meu caminho, sobe ao sótão pisando de mansinho, os pés descalços, vem olhar minha solidão sem rosto.

Talvez ele ainda me diga que há cães de sorte pior, que perambulam pela rua sem uma casa fria para outonar, que morrem de carro num dia ou de fome em todos os outros e que nunca sentiram a mão macia sobre o pelo do dorso. Como é triste o outono quando não se é mais nem a sombra da sombra do passado, quando corria pela casa, as patas curtas, a espinha longa, errando a curva deslizava pelo piso até espatifar-se no pé da mesa.

Hoje resta a ossama encarquilhada dentro da pele dura, o corpo é um monumento à dor, hospedaria de cãibras e reumatismos. A vida é um fiapo habituado a escombros, um costume alojado no seio de um velho cão que ainda têm fome quando o outono já veio.

O outono canta nos sinos e gira nos cata-ventos a notícia de que o humor morreu e a poesia se foi: como é triste o outono a cada pôr-do-sol quando ainda ficamos mais sós.



Joel Gehlen, crônica publicada no jornal A Notícia, no dia 28/03/2012

sexta-feira, 23 de março de 2012

Outono do meu tempo


Hoje é o primeiro dia do último outono de nossos dias. Outros haverá, é certo, mas até que cheguem, esse é o derradeiro. Então, vamos vivê-lo em cada desvão de dedos por onde a areia fina se desperdiça na ampulheta sem sono que resgata a duplicata de nossas horas. De grão em grão, passa uma vida inteira. O outono é uma festa sem polvorosa e se nos oferece como o pão e o sal para ressaltar o sentido e a energia que nos habitam até que o definitivo inverno se avizinhe, solerte e traiçoeiro. Os relógios de Sol giram mais céleres no outono, embora o coração, pela natureza da música, mantenha-se grave e compassado. No outono, Joinville nos cerca de um azul sem face, azul que é pura distância de outro lugar. Benditas montanhas de pedra e pluma que nos adivinham na solidão e nos velam para que não nos percamos no vazio sem fim que a abóboda do céu deixa cair sobre as noites ao luar, em plena plêiade dos naufragados.
O outono chega como um som de violoncelo, com uma gravidade que brinca em nossos ouvidos. O outono, mais até que a primavera, excessivamente contaminada pelo verão, é um momento de comunhão com a natureza, um tempo de caminhar e olhar o céu, seja noite ou seja dia. O outono é um descuido de Deus, uma janela entreaberta que nos apresenta o clima que o criador reservou só para os eleitos seus. Nada mais límpido, nada mais agudo, nada mais profundo e derradeiro que um dia de outono, pela sua densa luz, de uma coloração quente a depositar-se em nossa pele no arpejo doce de um beijo, cálido e arrepiante.
         O vento percorre as folhas das palmeiras e embrenha-se na mataria como um animal sem pele, uma serpente alada que enlaça e estrangula com violenta ternura e suave punhal de pétalas. E as folhas farfalham e se desmancham em movimentos com alegria e pânico como gestos de adeus. Como é triste o outono para quem perdeu o amor, com sua promessa de dias propícios a andar de mãos dadas ou demorar-se dentro de abraços apaixonados. Como é alegre o outono para as crianças de todas as idades que ainda brincam de “pique esconde” e correm e riem e gargalham sem as sufocações do verão.
         A tarde vem cair numa velha vasilha que deixo em pleno abandono ao meio do quintal, sem outra astúcia que estar disponível às disposições do tempo. Verte-lhe a luz como finíssima névoa dourada que dá de beber aos olhos sem ousar se deixar tocar. Uma bacia banhada em luz da tarde de outono é um inutilitário, não banha o rosto nem lava as mãos, mas purifica-me o seu olor de mirta, intenso como os banhos de Istambul em permanente repasto par os poetas: “Na abóbada da tarde cada pássaro é um ponto de recordar...”




Joel Gehlen



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