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quinta-feira, 28 de junho de 2012

Irresistível solidão



Nem sabia que a dor da solidão pudesse ser assim tão doída. Um doer a que não se resiste mesmo sendo o mais estoico dos seres. É uma lição a mais que aprendo. Ele também me ensina que ser paciente nos mantém vivos e, mais do que isso, que a vida vale a pena, por mais distante que estejam os dias dourados, por mais sofrida que seja a vida que se leva, por mais humilhante que pareça a sua condição. Todo dia aprendo que, com ele, um instante a mais de vida é uma dádiva, e por mais íntimo que a gente esteja da morte, não é a ela que se deve esperar, nem combater com desesperos e palpitações exageradas.


Na sua avançadíssima idade, ele abriu mão do que nos orgulharíamos tanto em chamar de dignidade – especialmente masculina – e também de qualquer prurido com relação ao corpo. Não há tabus mistificatórios, desde que essa velha máquina lhe permita manter a sensação de aconchego. Gosta de ouvir tevê, e sente-se bem se há música por perto. Com as pernas paralisadas há dois anos e sem força nos braços, só consegue mover-se à medida que apoia a cabeça no chão. Assim, permanece quase que na mesma posição há 730 dias, 17.520 horas. Longas horas em que não há absolutamente nada a fazer a não ser alternar períodos de sono e de vigília. Precisa de ajuda para comer e beber, necessita ser trocado e higienizado três vezes ao dia. Amiúde busco sinais de desistência em seu semblante. Não há, ele continua apegado à vida, crente na vida, sem avidez, mas com tenacidade.


Como não tem mais voz – apenas pode gemer – guarda nos olhos toda a expressão. Com o tempo passei a distinguir: olhos de fome, de frio, de desconforto. Mas nunca de angústia ou medo ou dor. Tem os olhos negros, fundos, encravados nas encovas como se lhe boiassem dois poços na testa. É preciso limpá-los com cuidado. São dois lagos de ternura, meigos e indefesos. Mergulhados em silêncio, guardam uma mansidão quase bovina. Neles se fez tudo que expressa, tudo que diz, refúgio derradeiro da esperança nesse corpo já tão adentrado nas sendas da noite grande.


Com a barriga coberta de escaras, a coluna e o peito deformados pelo esforço de manter-se numa única posição, com os ossos lhe esticando a pele como num curtume de Soledade, a dor não lhe dá trégua. Mas ele de nada reclama, nem de fome, frio ou sede. Só há uma inconveniência que lhe suplanta o estoicismo: a solidão. A sensação de silêncio e vazio arranca-lhe gemidos e queixas. Abdicou de todos os confortos sem lamentos, nada quer e nada tem, seu único bem é saber-se em companhia de quem quer tanto bem.


Joel Gehlen - Jornalista
letradagua@gmail.com

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