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sexta-feira, 14 de setembro de 2012

Uma cilada para a memória

Estive em Londrina depois de alguns anos sem voltar à minha cidade de formação. Vivendo há 17 anos em Joinville, ainda me confundo, às vezes, dizendo “aqui em Londrina...”, tanto aquela cidade de chão vermelho está entranhada nas veias, embora já tenha mais tempo de vida aqui do que lá. Enchi o porta-malas de livros – Vanessa, Karl, Manoel de Barros, Leskova, Taques, Selbach, dentre outros – e dirigi 600 kms para participar do Londrix, o Festival Literário de Londrina. Seis horas de solidão e estrada são mais que suficientes para dar a volta ao mundo entre o retrovisor e o para-brisa. Tempo de sentir e refletir que faz do homem que chega outro, distinto daquele da partida. Quanto mais avançava nos quilômetros, mais retrocedia no tempo.

Vencido o tenso caminho da serra e o intenso trafego que só arrefece além das de cercanias de Curitiba, a viagem se bifurca: o carro segue pelo asfalto e a alma percorre uma paisagem inventada com as tintas da memória e pinceladas da estrada. Os trigais acesos de outono no ápice da colheita fazem-me companhia dos dois lados da janela, desde os campos gerais de Ponta Grossa, seguindo pelo Terceiro Planalto ao encontro da serrinha de Ortigueira, lixa a limar a pedra bruta da esperança até a última poeira do caminho. Os tons de espigas secas, rútilos trigais de Van Gogh, se intensificam nos arrebóis londrinos. O céu apunhalado por um sol em seu ocaso derrama sangue na horizontina, e dois tons de vermelho valsam entrelaçados no crepúsculo que desce sobre as terras roxas tombadas para as semeaduras de Primavera.

Adentro Londrina naquele momento em que a primeira estrela vai refletir-se no vidro da janela, mas “acendem-se de súbito os postes de iluminação”. Acolho a cidade feito um abraço, sento-me no cordão do calçamento e pouso o dedo sobre seu pulso. Palpita por um fio tênue, ou será minha ansiedade que a põe em desalinho? Caio na multidão, ando a pé, desço a rua, subo o Calçadão, aturdido como se procurasse uma criança perdida. Parece-me outra cidade que não aquela que habitei e que ainda me habita. O ambiente é árido, não há mais os quiosques, as bancas de jornais, o pregão dos vendedores de bilhetes da loteria, não há mais. Que é feito dos meninos engraxates, que davam um lustre no sapato fazendo samba na caixinha?

Todas as pessoas pareceram que estão do outro lado de um vidro. “O que fizeram de ti, Londrina?”, ponho-me a perguntar. Custo a aceitar que a cidade espelha o outro que a observa, se parece tão estranha porque já não sou o que fora dantes. E o homem que caminha pelas suas ruas está 20 anos distante da sua mocidade.


Joel Gehlen - Escritor

terça-feira, 11 de setembro de 2012

Outras notícias de Primavera

Noites. Cheia de mistério e encantamento a rara lua azul, no último ciclo de agosto, depositou um beijo demorado na face da noite. Louça frágil, moça ousada, boiando na retina incandescente da Babitonga seu lírico cristal de espanto. Para além da beleza ou poesia desse instante, o ovário-firmamento de um Deus oculto insinua insondáveis imensidões em que se misturam noite e leite. Não há rastro nem pressa em seu caminho. O mesmo vazio a precede, evolve-lhe as ancas túmidas e a sucede. Um nada único e absoluto.

Cansado de interrogar o céu sem obter resposta, o homem que olha a lua azul do último agosto gasta os braços envolvendo um demorado abraço sobre seus dois pulmões oprimidos dentro do peito. O coração em pororoca desemboca um preamar sanguíneo dentro das veias, dilata-se atiçado como se houvesse decidido expandir-se até plasmar-se à branca nua que atravessa a testa do horizonte sem nuvens que lhe ponham um véu de tule sobre as espáduas torneadas. No lajedo, lagartas e mandorovás arrastam-se açoitados pela luz noturna e corrosiva, abandonam as folhas carcomidas das couves, dos tomateiros, e fogem para os breus dos vãos, enclausurando-se à quietude acuada dos casulos.

Tardes pairam sobre a tarde que cai e uma névoa camufla de giz sobre as cabeças. Suas gotículas umedecem a roupa no varal e se liquefazem arriba dos telhados fazendo os beirais deitarem grandes lágrimas frias na paisagem. Plúmbeas horas sem nome, que o relógio não dá conta de marcar, tocam-nos o obro como se fora o primeiro degelo de Primavera nesse frágil setembro sem plumagem.

Folhas ressequidas à soleira brotam um desconsolado adeus no crepúsculo do Inverno. Varridas pelo vento, riscam na pedra chã o coro lamentoso do corvo: “Nunca mais, nunca mais...”. E o eco que carrega com a palavra “mais” se degrada no ar enchendo os olhos de ais até que se deponham no roxo cardinalício dos ipês floridos em pencas, no bordejo de um luto sem pesar. Em estado de total quietude, o casulo falseia a morte. Então, desavisada, sem outro mote que a seda fina do mistério, avulta a asa ainda inerte vazada em vívidas cores na pela opaca da tarde cinza cintilante. O lento despertar da primeira borboleta de setembro ativa o coração da primavera, seu voo inaugural é irregular e claudicante, eleva-se ao sabor do vento, para além de onde a vista testemunha o milagre de arribar-se.

A manhã chega na arrebentação das orquídeas chuva de ouro, bem antes do Sol nascer, e se alastra nos ipês amarelos incrustando seu fulgor bíblico pelos caminhos da terra.


Joel Gehlen - escritor

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