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quarta-feira, 30 de junho de 2010

Ânsias de liberdade e algemas

Nunca a tinha visto antes, nem a vi depois. Chegou com voz decidida: - é uma carta de amor, gostaria que o senhor tirasse os tropeços da língua, pusesse as vírgulas no lugar e também visse a correção das palavras se estão conformes. O envelope branco, tipo ofício, sacado do bolso do macacão jeans, estendido na mão esquerda, a outra mão repousava sobre a bolsa a tiracolo. Um ar de colegial, 16, talvez 17 anos. Em vez de trancinhas nos cachos cor de trigo, trazia um chapéu de tecido azul-profundo que imitava o abismo visceral de seus olhos em porcelana.
Tentei argumentar que não era a pessoa mais indicada, onde já se viu ler a correspondência alheia, que todas as cartas de amor são patéticas, que nas entrelinhas e imperfeições é que estão os conteúdos mais humanizantes das missivas amorosas. Ela fez pé firme. - Você teeeeem de ler. E apelou para a candura, o jeito de menina. Não mostraria a mais ninguém, nem à mãe ou mesmo à Aninha. – Taí - argüi - uma amiga é... Ela se riu em malícias fêmeas, depois ameaçou arrancar os olhos de qualquer mulher que lesse aquilo, e por fim explicou que Aninha era sua cadela beagle que só faltava falar.
Bom, que jeito. Esqueci a pressa, ela deitou a bicicleta na sombra e sentamos na mureta de pedra. A carta estava datilografada numa folha de caderno, com letras irregulares, quase apagadas, em linhas que dançavam no papel, sem respeitar as separações silábicas nem as maiúsculas após os pontos. Apesar do aparente caos, não pude deixar de perceber que suas frases sabiam aplicar “jebs” no queixo do leitor.
Ela, ciente do estrago de que era capaz, preferia olhar para as formigas, fingia estar distante, rabiscava qualquer coisa na laje do muro, mas acompanhava tudo pelo ritmo da minha leitura. Quando terminei de ler pela terceira vez, ela tomou a folha da minha mão e picou-a em mil pedacinhos. Depois, pedalou sem olhar para trás, deixando escorrer pelo ar o papel picado, fragmentos de uma carta sem remetente nem destinatário, que dizia mais ou menos o seguinte:
“Resolvi lhe perdoar pelos seus olhos de cais noturno, lânguidos, úmidos e possuidores de uma eterna promessa de partir, de chegar e de nunca estar satisfeito, senão no próximo porto e ainda outro e outro mais. Resolvi lhe perdoar, porque há ferrugem nas folhas das árvores da minha rua, e este cobre sobre a paisagem põe-me indefesa desde a primeira hora da manhã. Porque saio de baixo das cobertas e vou escovar os dentes sem roupão, para ver se pego uma gripe, uma febre alta, qualquer dor maior que me traia e distraia de você. Resolvi lhe perdoar porque ontem quebrei o aquário onde o peixe-pau-pra-toda-noite-de-insônia sorria. Depois, juntei os cacos de vidro para alisar a pele e esperar ansiosa pela presença de sua carne na minha navalha. Só porque, de repente, num estalo, eu me lembrei do sabor de suas sementes e do meu adorado campo de trigo acariciado pelas idéias mais sedosas com as costas dos dedos alísios. Lembrei também de seus ombros e da qualidade de seu abraço que me fez escrava. Estou faminta e preciso saciar este coice indomável, sentir em mim o peixe-fora-d’água, respirar com dificuldade, apelar para a ducha fria na madrugada, escorregar até o ladrilho e me fazer esquecer. Aos poucos, meus caldos se aprontam. Como um Vesúvio, rondo os subúrbios do fogo. Estou cansada de explodir contra o espelho vazio, por isso resolvi lhe perdoar. Porque o inverno vai passar, a primavera vem aí e tenho o amor em ânsias de liberdade e algemas.”
Joel Gehlen

terça-feira, 22 de junho de 2010

Pra pedir perdão

Na noite passada não vi a lua. Era um sorriso de orelha a orelha rasgado no céu, ouvi dizer. Um sorriso de prata definitivamente perdido no firmamento, pois a lua é de quem vê e não a vi. Ficou para sempre esquecida dos meus olhos a emoção que viria com a sua mirada, as lembranças boas – pois a lua é o lugar de memoráveis momentos – tê-la visto seria um instante de paz num mundo de guerra. E, como diria Lupcínio, não vá pensar o leitor que a guerra de que estou falando é aquela feita por tanques e canhões. Mas da artilharia de mesquinharia em que nos engalfinhamos todos os dias. O fato é que somos mesquinhos porque somos egoístas por natureza. Farinha pouca, meu pirão primeiro, diz o dito. E vivemos um tempo de absoluta carência das farinhas da convivência.
Faltam nas prateleiras a farinha da gratidão, da generosidade, do bom senso, da humildade, do perdão. Assim, ligamos o carro e saímos xingando, porque estamos atrasados e o trânsito não anda. Há um homem taciturno e não lhe oferecemos a côdea de compreensão, mas o amargo de uma palavra mal cuspida – traste! O moço que faz malabarismo na esquina poderia ser um instante de graça e distender os músculos da face dos que passamos. Caso atiremos um níquel, ele agradece; mas se o chapéu volta vazio, não pragueja nem desiste, faz mesuras e insiste, engole fogo e arrota esperança. O sinal se abre e arrancamos aliviados sem notar-lhe as necessidades e desejos. Terá fome? Terá filhos que não têm leite? Fuma crack? Toma pinga? Sonha ser artista? Tem para onde voltar depois da esquina? Não há tempo para saber, estamos em guerra, contra o trânsito, contra o ambiente no trabalho, contra o concorrente, contra as contas a pagar.
Tento dizer que não vemos as pessoas como seres humanos, e da mesma forma não somos vistos por elas, assim, construímos um mundo cada vez mais intolerante e nos fazemos explosivos a troco de nada. E nos viciamos em nós mesmos, necessitando doses cada vez maiores de cinismo, com beijos e abraços cheios de calor e falsidade, e nos tornamos cada vez mais desconfiados, solitários, tristes, vazios e incapazes de dar o primeiro passo. E nos tornamos irreconhecíveis. A vida não é só isso pelo que se briga, mas também aquilo que se nos oferece desinteressadamente e que estamos perdendo a capacidade de perceber. Como ver uma fase da lua, uma face da rua, uma frase do sol derramando seu ouro nos contornos oblíquos do outono que se despede, porque tudo se despede para nunca mais, inclusive os sonhos e a pelo que nos encerra. Não, caro leitor, não escrevo para acusar, mas para reconhecer: tristemente me confesso cada vez mais imerso nesse ser que repudio.
Joel Gehlen
Publicado dia 21/06/2010 no Jornal Notícias do Dia

terça-feira, 15 de junho de 2010

Uma rosa para setembro

Cara leitora, próxima ou distante, estou soterrado no tempo, mas, esta manhã, explodiu uma rosa em meu jardim. Uma rosa rosa, rasa, simples, como sói acontecer às rosas. Bem em frente à janela de trabalho, ela sopra seus alísios que imagino perfumados. Já que as rosas não fabricam cheiro, ela sobra no êxtase puro de ser simplesmente, bastada naquilo que a fere de vital beleza: sua efemeridade. Enfim, querida leitora, essa rosa trouxe saudades, e te escrevo para dar a grave notícia deste florescer rompendo o peito do inverno que ainda nos encobre com seu metal distante, embora setembro seja o nosso ninho.
Olha, é quase manhã, e essa rosa enorme, maior que meu planeta, incendeia o jardim com sua solidão acompanhada de outros três botões de rosa, promessa tênue de um dia sermos um quarteto, estourando em profusão sua antiga cor. Uma rosa solitária na matéria fria da manhã rompe o casco deste dia modorrento. Uma rosa e três botões, mais nada.
Esse silêncio todo me deixa intrigado. Depois, passa a ser incômodo, até desesperador. Sei, sou eu quem o engendra com meu silêncio ainda maior. Todas as desculpas do mundo – inclusive dizer que estou até estas horas trabalhando em frente ao computador – podem justificá-lo, mas como dói. Não estou escrevendo para justificar. Só queria dizer que, a nosso modo, morremos todos a morte horrível daqueles marinheiros russos nos mares gélidos da solidão. Quem de nós tomará a iniciativa de acionar os escafandristas noruegueses?
No entanto estamos aí, escoando fininho feito areia pelos vãos dos dedos, nos escombros do tempo. Foi então que, já com a manhã soprando sua luz difusa, dei comigo de te escrever, assim sem assunto, sem perguntar nada, sem ter resposta alguma, sem vontade de dizer do frio ou do calor dessas plagas, sem sucesso ou infortúnio para anunciar. Escrever apenas para dizer que estou aqui, sempre o mesmo, atolado nas mesmas amarguras. Escrever, enfim, porque estava com saudades de um universo compartilhado, insubstituível, de um universo com seres humanos generosíssimos, tão necessários e que, às vezes, parecem não existir.
No último instante, à maior claridade, pude divisar entre as ruínas do breu essa rosa pálida, irmã afetuosa que amanhã enfeitará nosso fim. Nesse momento estou a arrebatá-la com os olhos para você, bela e frágil rosa de todos os tempos, cravada no peito do inverno, em completa quietude.
Joel Gehlen

quarta-feira, 9 de junho de 2010

Silêncio

O pré-requisito para ser cronista é ter opinião sobre tudo, e isto inclui coisas sobre as quais você não tem opinião nenhuma. Se de tudo que há no mundo, a maioria desconheço; e do pouco que sei, a maioria desconheço a essência, há semanas em que escrever se torna quase um martírio. Há semanas em que o cronista sente-se melindrado por ter opiniões próprias, e que por serem próprias podem ir contra a maioria. Em tempos de democracia, ser minoria é um erro.
Crônicas não têm propósitos científicos, são opiniões pessoais, muitas vezes pessoais demais. E toda exposição é arriscada. Nos dias de hoje o risco está além do pensamento, na palavra. Expressões outrora banais são agora politicamente incorretas e podem colocar em quem as profere rótulos. Mas já que estou aqui e você está aí querendo saber a opinião do cronista, creio que tenho a obrigação de ir adiante. E vou.
Esta semana, em uma mesma sessão da Assembléia Legislativa, votava-se a favor de uma lei para proibir as pulseirinhas do sexo, aquelas coloridas que contêm códigos criativos e um tanto explícitos sobre o tema. Na mesma sessão, minutos depois, um deputado retirava de seu discurso a expressão “Samba do Crioulo Doido”, imortalizada em 1968 pelo cronista Sérgio Porto, mais conhecido por Stanislaw Ponte Preta. Seu samba satiriza as mazelas dos compositores de escolas de samba que tentavam retratar a história do Brasil.
O que uma coisa tem a ver com outra: as pulseiras, deputados, não são as culpadas! Vocês estão mascarando a realidade e fazendo performance para a mídia. O problema é mais profundo e tem a ver com a educação de nossas crianças, com o acesso à informação no tempo errado. “Isso é conversa de adulto”, que tantas vezes ouvi de meus pais, sumiu da boca dos pais de hoje. Está-se querendo punir pulseiras! Esta lei mal poderá ser cumprida. Ou vão colocar policiais algemando crianças que as usarem? As soluções imediatistas não são mais do que soluções paliativas. Neste caso, nem solução me parece.
E o crioulo, o que tem a ver com isso? Bem, o crioulo faz parte desse grande balaio de gato que se tornou a ética e a moral de nosso tempo, por que, ao mesmo tempo que se trava uma luta infame contra pulseiras coloridas, proíbe-se o uso de expressões inócuas até então. Nem tudo que sai da boca reflete o caráter de quem pronuncia, nem tudo no mundo é resolvido com lei. E eu só queria me manter em silêncio desta vez.
Jura Arruda
Publicado dia 17/04/2010 no Jornal Notícias do Dia
Radicado em Joinville desde 1984, escreveu para teatro e vídeo, participou de publicações literárias e é autor do livro infantil Fritz, um sapo nas terras do príncipe (Editora Letradágua). Atualmente é cronista do Jornal Notícias do Dia.




terça-feira, 8 de junho de 2010

Noturno em silêncio maior

Wilson Bueno é o magnífico prosador, o melhor dentre os melhores. Agora, todos saberemos que assim o fora, pois a morte destina a tudo. Mas não venho falar da sua obra, que essa fica, permanece, suplanta o homem e o monumenta. Os livros estão aí, ao alcance dos dedos dos olhos do coração. Quem ainda não viu, que agarre agora e repare. O ausentado é o amigo – o amigo bueno – o ser de imensa ternura e permanente afeto, delicado e comedido, reconhecendo sempre a iminência dos acontecimentos maiores, polido e gentil. Afeiçoamos-nos em anos de crônicas, romances e poemas. Sempre o ofício de escrever, espinhento ofício em sobrevidas, sobressaltando as inumeráveis lidas.
E de repente a noite abriu sua boca sobre nossas cabeças. Uma noite úmida, viscosa e longe de casa. Uma noite dolorida, feita da sua ausência, da sua perda, da sua partida. Exatamente às cinco de la tarde, como naquele poema do Lorca, em frente à igreja da Ordem Terceira do Rosário a noite se fez da insofismável substância da sua ausência. O vento vindo do Leste açoita um borrifo úmido que não era chuva, mas a suspensão dos olhos a te velar. Não vi a máscara de cera em que te recolhestes definitivamente cerrado, olhei a rua abaixo com suas luzes tímidas num bruxuleio de ficção. O Largo acima com seu cavalo d’água, centenários pinheiros ao fundo, o espaço deserto do campanário onde nenhum dobre vinha anunciar sua partida. Incréu cenário de vigília e ausência. A noite cachorra, de uivos fundos e funesto silêncio, pousou sua mão sobre a nuca da cidade, num conduzir de conciliação e degredo.
Querido Wilson, tardiamente trago essa notícia de que esses têm sido tempos ruins, por não caber neles espaços para os que queremos bem, por não caber neles ocasionalidades, um bem-querer sem-cerimônias, um afeto que se nutre de afetos. E esse tempo doente em que nos consumimos todos, quanto mais passa menos ultrapassa, se acumula tentacular como a metástase devastadora que nos impede gestos essenciais, como um simples contato por telefone, um correio eletrônico ou a postagem de umas linhas no papel, à moda antiga. Qualquer gesto nos salvaria do mal desse mau tempo, mas estamos cada vez mais tomados por seu fel. Então a indesejada das notícias chega, uma lâmina inapelável e breve e nada mais há para se fazer senão dar a cara ao vento Leste, úmido, frio e noturno.
Fora isso, só o reticente silêncio. Mesmo na ausência, o coração sempre latindo, Buenamente!
Publicado dia 07/06/2010, no jornal Notícias do Dia, por Joel Gehlen.

terça-feira, 1 de junho de 2010

Culpas inocentes

Um gesto não feito, uma mão que não foi estendida, uma boa vontade que não houve. Enfim, mínimas corrosões do caráter, esses defeitinhos com que todos saímos de fábrica – e o primeiro deles é achar que não temos defeito nenhum – e que causam grandes dissabores, podem estragar dez minutos de uma vida ou uma vida por inteiro, sem que o algoz sequer saiba das consequência de sua omissão ou de sua ação. Ou saiba, mas releve, face à vida também embrutecida por pequenos detalhes que ninguém dá a mínima. Inocentes detalhes, nem por isso menos culpados.
Ah, os pequenos poderes, como são deletérios. Pessoas encasteladas em seus diminutos feudos, pode ser um simples carimbo, uma assinatura, olhar no crachá e dizer pode ou não pode, marcar uma hora, responder tem ou não tem. Enfim, detalhes, mas esse é o seu poder e será manejado com absoluta destreza para causar o mal, com a desculpa de que está cumprindo o seu dever, que este é o regulamento e blá-blá-blá... Todos nos indignamos se um médico deixa de salvar um paciente, mas ninguém fala nada se uma pequena atitude deixa de ser tomada e isso destrói a vida de uma pessoa. O diabo mora nos detalhes e ele é mais comum do que possamos imaginar.
Sujeito atende numa repartição pública e se diz bastão da legalidade. Ah, a lei, esse pântano fétido e movediço que dá azo a quantas interpretações forem necessárias para inocentar ou condenar, dependendo apenas da intenção de seu interprete. Como um César, Sujeito tem o poder da vida ou da morte no polegar. Positivo ou negativo na mesma mão, no mesmo dedo e no mesmo caso, na mesma lei! E o sujeito olha para você com cara de reticências, um meio sorriso na boca, as mãos vazias e desesperantes. A injustiça é mais que um soco no fígado. A quem recorrer?
Sujeito trabalha na guarda municipal, recebe um boné, uma fada azul e um bloco de multas. Deveria ser um agente de trânsito, orientar, educar, por ordem e, em último caso, multar. No entanto, ardilosamente se acoitam atrás dos postes, na sombra das árvores, no vão dos becos, de bloco empunho, multando indistintamente. Depois, o cara recebe a multa em casa, se irrita, briga com a mulher, bate nos filhos, chuta o cachorro, sai de cabeça quente, amargurado, qualquer desgraça pode acontecer: bater o carro, perder o emprego, dar um tiro em alguém. E o guarda palita o dente e arrota, enquanto anota multas num canto qualquer da cidade.
Devíamos prestar mais atenção no tal “efeito borboleta”, segundo o qual um inseto bate as asas na Ásia e, aquela mínima, inocente inintencional movimentação de ar provoca um furacão no Golfo do México, causando morte e destruição.
Joel Gehlen
Publicado dia 31/05/2010 no Jornal Notícias do Dia

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