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terça-feira, 1 de junho de 2010

Culpas inocentes

Um gesto não feito, uma mão que não foi estendida, uma boa vontade que não houve. Enfim, mínimas corrosões do caráter, esses defeitinhos com que todos saímos de fábrica – e o primeiro deles é achar que não temos defeito nenhum – e que causam grandes dissabores, podem estragar dez minutos de uma vida ou uma vida por inteiro, sem que o algoz sequer saiba das consequência de sua omissão ou de sua ação. Ou saiba, mas releve, face à vida também embrutecida por pequenos detalhes que ninguém dá a mínima. Inocentes detalhes, nem por isso menos culpados.
Ah, os pequenos poderes, como são deletérios. Pessoas encasteladas em seus diminutos feudos, pode ser um simples carimbo, uma assinatura, olhar no crachá e dizer pode ou não pode, marcar uma hora, responder tem ou não tem. Enfim, detalhes, mas esse é o seu poder e será manejado com absoluta destreza para causar o mal, com a desculpa de que está cumprindo o seu dever, que este é o regulamento e blá-blá-blá... Todos nos indignamos se um médico deixa de salvar um paciente, mas ninguém fala nada se uma pequena atitude deixa de ser tomada e isso destrói a vida de uma pessoa. O diabo mora nos detalhes e ele é mais comum do que possamos imaginar.
Sujeito atende numa repartição pública e se diz bastão da legalidade. Ah, a lei, esse pântano fétido e movediço que dá azo a quantas interpretações forem necessárias para inocentar ou condenar, dependendo apenas da intenção de seu interprete. Como um César, Sujeito tem o poder da vida ou da morte no polegar. Positivo ou negativo na mesma mão, no mesmo dedo e no mesmo caso, na mesma lei! E o sujeito olha para você com cara de reticências, um meio sorriso na boca, as mãos vazias e desesperantes. A injustiça é mais que um soco no fígado. A quem recorrer?
Sujeito trabalha na guarda municipal, recebe um boné, uma fada azul e um bloco de multas. Deveria ser um agente de trânsito, orientar, educar, por ordem e, em último caso, multar. No entanto, ardilosamente se acoitam atrás dos postes, na sombra das árvores, no vão dos becos, de bloco empunho, multando indistintamente. Depois, o cara recebe a multa em casa, se irrita, briga com a mulher, bate nos filhos, chuta o cachorro, sai de cabeça quente, amargurado, qualquer desgraça pode acontecer: bater o carro, perder o emprego, dar um tiro em alguém. E o guarda palita o dente e arrota, enquanto anota multas num canto qualquer da cidade.
Devíamos prestar mais atenção no tal “efeito borboleta”, segundo o qual um inseto bate as asas na Ásia e, aquela mínima, inocente inintencional movimentação de ar provoca um furacão no Golfo do México, causando morte e destruição.
Joel Gehlen
Publicado dia 31/05/2010 no Jornal Notícias do Dia

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