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quinta-feira, 18 de outubro de 2012

O livro das felicidades

As estradas rurais da minha infância, de terra vermelha e barrancos elevados, eram espaços mágicos. Gastava horas inteiras sentado sobre a velha porteira, o olhar cheio de espanto para o caminho que surgia depois da primeira curva. Uns urubus voando no céu enquanto pombos e maritacas vindos do potreiro punham-se no sem fim da mata. Dela poderiam surgir preás, nhambus, lagartos e cobras. Até algum esquivo macaco nas copadas da ribeira. Distrações passageiras, o infante querer dedicava-se inteiro ao que pudesse surgir do além da curva da estrada.

Nesse cineteatro desenrolavam-se dramas e aventuras que o coração conviveu palpitante e que a memória juntou como um maço de gravetos sem saber bem onde guardar. A sonoplastia feita de pássaros próximos, mugidos ao longe e um cão que late incerto, quiçá do outro lado do mato onde o ouvido alcança os dedos da imaginação. A figuração do vento está por todos os lados, campeia no chão, bole nas árvores e varre no céu distinto engalanado de azul. Há um zunzum de moscas e abelhas que nunca soube se estavam no roteiro ou foi um furo da produção. Pairando sobre tudo, age um silêncio, uma lentidão, uma densa expectativa que faz o espetáculo começar.

Galos! Infames, galos. Quase põem tudo a perder, que gargantas mais renitentes, alguém pode cala-los? Melhor dar-lhes um papel. Ébrios da madrugada, alongam a garganta intumescida de sol como se lhes dependesse do canto a sustentação do próprio dia. Tem ainda a tristeza desses sabiás, mais afinados, é claro, mas igualmente incontidos, desde que furam com o bico a primeira réstia de luz na barra do horizonte até que se finam crepusculares, num voo rasteiro por baixo da saia dos laranjais.

E quando a primeira cena enfim vai começar, um tapa estala fazendo eco na mataria, três ou quatro muriçocas esmagadas debaixo da palma da mão fazem brotar pontinhos de sangue e coceira na barriga da perna desprotegida pela calça curta. As mãos ágeis evitam outras picadas, mas, inebriado no êxtase da primeira aparição, abandona sua carne ao banquete dos insetos.

O ouvido do lado que o vento sobra denuncia o ronco de um motor. Instala-se a primeira angústia: aproxima-se ou se distancia? É como um rádio mal sintonizado, ora claro, ora longe. Agora é nítido, cada vez mais perto, capta o radar cardíaco. O que será? De onde vem, para onde vai? Leva um doente? Uma criança com pneumonia? Os instantes que antecedem a curva da estrada são intensos e demorados. Quando enfim surge em cena aberta, corta a tela numa diagonal flamejante um fusquinha 68, azul celeste levantando uma nuvem de poeira que o faz sumir tão logo aparece. Lentamente o pó vai assentar-se nas folhas da encosta, umedece no suor que poreja o rosto do menino e amarra um gosto de terra na garganta aberta de espanto.


Joel Gehlen - escritor
letradagua@gmail.com

sexta-feira, 12 de outubro de 2012

A última tentação de Ulysses

Amanhã, se completam 20 anos do desaparecimento de Ulysses Guimarães nas águas azuis do mar de Angra dos Reis. Devemos muito do Brasil que temos hoje às suas virtudes e ao seu papel, não apenas no enfrentamento à ditadura militar e no restabelecimento da democracia no Brasil, mas, principalmente, na elaboração da “Constituição Cidadã”, de 1988. Ela é o principal artífice que vem permitindo o desenvolvimento contínuo do País em todos os campos, do econômico à inclusão social. De todos os personagens públicos brasileiros no último meio século, ele é o que mais fez pela construção da realidade de que desfrutamos hoje.

Ulysses não teve apenas o nome de herói grego, mas viveu uma trajetória à altura dos grandes mitos. A exemplo do personagem de Homero, teve uma vida de provações, enfrentou forças monstruosas e resistiu ao canto sedutor das sereias. Com ele, foram colocados à prova alguns dos princípios do ser humano. Honra, justiça, fidelidade, caráter, solidariedade, generosidade, desapego, entre outros, são valores provados e fortalecidos nas vivências de Ulysses Guimarães.

Como só ocorre com as grandes figuras mitológicas, Ulysses trilhou um caminho solitário. Embora sempre rodeado por bons companheiros – entre eles um de Joinville – e da onipresença de dona Mora que, a exemplo de Beatriz, foi sua companheira inclusive na senda da morte, Ulysses viveu a mais dramática das solidões: a de estar só entre as gentes. Por mais que partilhasse e acolhesse conselhos, suas decisões exigiam dele o sacrifício de se saber o único responsável.

A vaidade é o pecado preferido do diabo, põe a perder o homem comum e, em especial, é a perdição das figuras públicas. Mãe da ambição, da arrogância e das injustiças, leva-nos a trilhar caminhos atrozes para atingir o fim que lhe justifica. Justamente nesse ponto nevrálgico Ulysses enfrentou – e venceu – sua maior tentação. Durante os Anos de Chumbo, foi o quixotesco anticandidato no jogo perdido do Colégio Eleitoral que elegia os presidentes ditadores. Estabelecidas as condições para vencer nessa arena que tantas vezes o derrotou, abdicou da vitória em favor de Tancredo Neves; com a morte de Tancredo, a cadeira presidencial estava em suas mãos, bastava assumi-la, não o fez.

Restabelecido o voto direto, bebeu o cálice amargo do abandono, seus companheiros – salvo honrosas exceções – o trocaram por 30 moedas de poder. Deposto Collor de Mello, a faixa presidencial voltou a flertar com o velho guerreiro, no entanto, no dia da Padroeira de Aparecida e das crianças, ele foi ao encontro do seu destino no abismo de azul e sal. A glória do seu legado não é a resistência aos militares, mas as sucessivas renúncias à vaidade. Para ele, não havia outro poder senão o seu sonho de poder.

Joel Gehlen, jornalista


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