Hoje é o primeiro dia do último outono de
nossos dias. Outros haverá, é certo, mas até que cheguem, esse é o derradeiro.
Então, vamos vivê-lo em cada desvão de dedos por onde a areia fina se desperdiça
na ampulheta sem sono que resgata a duplicata de nossas horas. De grão em grão,
passa uma vida inteira. O outono é uma festa sem polvorosa e se nos oferece
como o pão e o sal para ressaltar o sentido e a energia que nos habitam até que
o definitivo inverno se avizinhe, solerte e traiçoeiro. Os relógios de Sol
giram mais céleres no outono, embora o coração, pela natureza da música,
mantenha-se grave e compassado. No outono, Joinville nos cerca de um azul sem
face, azul que é pura distância de outro lugar. Benditas montanhas de pedra e
pluma que nos adivinham na solidão e nos velam para que não nos percamos no
vazio sem fim que a abóboda do céu deixa cair sobre as noites ao luar, em plena
plêiade dos naufragados.
O outono chega como um som de violoncelo,
com uma gravidade que brinca em nossos ouvidos. O outono, mais até que a
primavera, excessivamente contaminada pelo verão, é um momento de comunhão com
a natureza, um tempo de caminhar e olhar o céu, seja noite ou seja dia. O
outono é um descuido de Deus, uma janela entreaberta que nos apresenta o clima
que o criador reservou só para os eleitos seus. Nada mais límpido, nada mais agudo,
nada mais profundo e derradeiro que um dia de outono, pela sua densa luz, de
uma coloração quente a depositar-se em nossa pele no arpejo doce de um beijo,
cálido e arrepiante.
O vento percorre as folhas das
palmeiras e embrenha-se na mataria como um animal sem pele, uma serpente alada
que enlaça e estrangula com violenta ternura e suave punhal de pétalas. E as
folhas farfalham e se desmancham em movimentos com alegria e pânico como gestos
de adeus. Como é triste o outono para quem perdeu o amor, com sua promessa de
dias propícios a andar de mãos dadas ou demorar-se dentro de abraços
apaixonados. Como é alegre o outono para as crianças de todas as idades que ainda
brincam de “pique esconde” e correm e riem e gargalham sem as sufocações do
verão.
A tarde vem cair numa velha vasilha que
deixo em pleno abandono ao meio do quintal, sem outra astúcia que estar
disponível às disposições do tempo. Verte-lhe a luz como finíssima névoa
dourada que dá de beber aos olhos sem ousar se deixar tocar. Uma bacia banhada em
luz da tarde de outono é um inutilitário, não banha o rosto nem lava as mãos,
mas purifica-me o seu olor de mirta, intenso como os banhos de Istambul em
permanente repasto par os poetas: “Na abóbada da tarde cada pássaro é um ponto
de recordar...”
Joel Gehlen
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