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terça-feira, 13 de julho de 2010

Vésperas de nêsperas

Quando a gente vê, é fim de agosto. Meu Deus, já se passou quase um ano e eu nem abri a janela, não caminhei até o outro lado da rua, não fui até a Misericórdia, não subi a Redenção. Quando a gente vê, é tarde para o conforto, a alma em confronto trava um grotesco bailado tenso. A alma é uma criança que não aceita estarem perdidos os tesouros; outrora, futuros; e agora, quimeras.

É quase setembro e o inverno nem veio. Coisa ruim esta de passar o ano sem ter tido um bom inverno. Há coisas, creio eu, que só medram no frio, uns sentimentos hibernais que agora se acotovelam nesta quase primavera, na expectativa dos acontecimentos essenciais, como por exemplo a chegada do tempo das nêsperas, as ameixinhas amarelas que atingem seu melhor grau de maturação e doçura no fim do inverno.
Há algum tempo venho atinando com um poema cujo primeiro verso dissesse assim: Naquele ano, às vésperas das nêsperas... Um poema que falasse a respeito das noites úmidas que alvorecem no cacho dourado das ameixeiras, prenhes de sol e que vão tomando cada vez mais uma ferrugem que o tempo lhe abotoa na cor. Seriam versos que iriam intuindo, lentamente, a forma maturada das futuras manhãs. Uma poesia que fizesse a esperança dos homens velhos e, ao mesmo tempo, trouxesse consigo o alaranjado dessas pitangas frutificadas no correr de agosto e que agora pendem à minha janela.
E com as nêsperas e pitangas chegam os sanhaços e sabiás, nos quintais de Joinville.
É quase primavera também aqui em Copacabana. Da janela do gabinete de trabalho de Ilmar, estende-se uma paisagem de telhados. Um pardal pousa no parapeito da janela. Pensei num tico-tico, ou curió, talvez vindo lá da Floresta da Tijuca ou do Jardim Botânico. Mas era apenas um pardal, um vil pardal no parapeito da janela batida de sol. Sentado à máquina de escrever, o homem é todo concentração no seu trabalho.
De chinelo e roupa branca, entre recortes de jornais, livros, discos e revistas, ele está sério atrás dos óculos. A sala suspensa numa quietude atravessada pelo trânsito lá de fora. Bia, na cozinha, não faz barulho. Dina desceu, foi para a cidade, a casa está vazia. O mundo inteiro gravita nas páginas dos jornais. A garganta de um galo cantando no morro ali em frente faz haver o vôo do pássaro: nunca mais, nunca mais.
E porque é agosto o sábado no Garota de Ipanema é cheio de reminiscências. O bar está lotado, há vozes e risadas e, no entanto, uma mesa está vazia. Ao Tom e Vinícius acrescenta-se Rubem Braga, recém-chegado do Riocentro, onde foi autografar mais uma reunião de suas crônicas.
Chope na mão, de frente para o músico e o poeta, o cronista abre a pequena antologia na página 31 e lê em voz casmurra: “Meu caro Vinícius de Moraes, escrevo aqui de Ipanema para dar-lhe uma grave notícia...” Depois, a voz submerge no murmurinho do bar. O mar anda meio agitado, a água fria quebra rugindo na areia branca. Mesmo assim há três, trinta, trezentas mil garotas de Ipanema que usam minissaia e andam pela rua que leva o seu nome, Vinícius.
O Tom, na fotografia, veste branco e chapéu de palha. Está ao lado da placa com teu nome, poeta. Logo ali é a Rua Nascimento Silva, cento e sete... Depois, faz-se um prolongado silêncio na mesa, com cada um na elaboração das coisas que não chegaram a ser ditas.
Na manhã de domingo, chove e faz frio. Uma corridinha até o primeiro bar. O bairro inteiro parece ter marcado encontro ali na esquina, jornal embaixo do braço, para o bom-dia dominical.
– Um coco, seu Júlio, e com muita água!
O português atrás do balcão salta pedaços de quadril assado no forno, uma toalha no ombro, mãos engraxadas, vai cortando as fatias em porções. As mãos vão do assado para o freezer de cerveja e daí ao caixa para o troco, e de volta para o pernil.
A chuva engrossa. Jornal sobre a cabeça, pelo abrigo das marquises, até o Marmitas. O nome do botequim na plaquinha sobre a única porta do cubículo, um balcãozinho com uma caixa registradora e a pia de lavar copos. Quatro ou cinco mesas onde se passa o domingo idealizando a segunda-feira, longe dos táxis que rodam pela cidade acompanhando a rodada do Brasileirão pelo rádio. Cerveja Boêmia e caldo de mocotó até que a chuva dá uma trégua. De fato, Rubem, a escrita não está à altura de uma beleza tão branda quanto uma tarde chuvosa, num domingo de agosto de uma emergente primavera.
Joel Gehlen

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