Recent Posts

quinta-feira, 26 de julho de 2012

Dia do Escritor

Poderia escrever a crônica mais triste nesta quarta-feira de plúmbeo frio que atravessa a pele e além. Talvez devesse repetir ao infinito o verso da canção desesperada, como as vagas impacíficas de Isla Negra, e sofrer uma perda até o fim dos séculos e séculos. No entanto,
restam-me estas mãos que um dia lavraram a terra e agora oficiam a luta vã, estes olhos e ouvidos, estes sentires que peguei na infância quando se adoece de todos os males. Tive caxumba, sarampo e meningite, tive prego enferrujado atravessado no pé como na crucificação, passou-me as noites com unguentos e chás rezas, minha mãe. Não gangrenou. Tive a canela atravessada pelos dentes da serra de cortar cerne, ficou a cicatriz medonha, como no alto da coxa, beliscada por uma cobra d’água. De tudo livrou-me a zelosa mãe e as irmãs tão cheias de cuidados e carinhos. Depois veio a bruta dor pneumônica, baixei no
hospital São Pedro de Mamborê:

– Dói?

– Não, mãe, só quando respiro.

E seus dedos calosos de lavradora colhiam os suores na infanta testa. Até a epilepsia se foi sem deixar vestígio. Mas essa moléstia maior, esse cancro, essa metástase crua alastrou-se por todas as maneiras que há de ser, sentir e estar no mundo. Dela não há refúgio, não há pausa, nem o Emplastro Sabiá me salva dessa dependência cancerígena de escrever. Deus, onde foi que a infecção começou? Doença mal curada na infância, correi feito cupim, sou apenas essa casca de gente que se vê por fora, o resto é o vazio de ser o que se escreve. A vastidão sem fim do nada, as palavras ditas em um museu de cera, para ninguém.

Acúleos da escrita chovem na aguda solidão sem esperança e búfalos bufam patadas no estômago, só uma borboleta repousa plácida sobre a fúria. Os olhos do mundo se voltam para ela sem dar vista ao tropel, disparada indimensionável de chifres negros. O Karl envia-me essa esta contradita: minha única riqueza é o ato de escrever, por isso escrevo tanto, pra não minguar no deserto da mais rude loucura. Estou num exílio danado, contudo sei que meu maior desterro foi ter acompanhado, minuto a minuto, o escoar para o vazio do mais singular dos seres. Depois que a vó Ana foi sepultada, todos foram tomar sorvete e eu, taciturno, refiz um caminho que fazíamos durante anos e, de uma janela da praça da Matriz, vazava uns acordes da Quinta de Beethoven. Sentei no cordão da calçada onde, desde então, continuo sentado, na tentativa de escutar outra vez.

A loucura é, sendo escravo, empenhar-lhe tanto esforço, espírito e astúcia, dedicar-lhe tudo aquilo que não temos para mais nada: vida que se consuma na danação de depor palavras sobre o éter.

Enquanto dedilho esta crônica, com os músculos em dor de outras escritas, penso na frase do Wilmar Sassi: Escrever é praga de mãe.

Nunca cessa e os astros, assaz distantes. O resto é silêncio.


Joel Gehlen

terça-feira, 24 de julho de 2012

Tatiana Leskova


segunda-feira, 23 de julho de 2012

Palco da Sagração


sexta-feira, 13 de julho de 2012

UR-CANTO A PALO SECO

Sem o ar na caixa torácica do homem,
a água corrente cessa
e o dente-de-leão seca.
Sem a água nas veias do homem,
a floração do arco-íris branco míngua
e o pote quebra.
Sem a música nos nervos do homem,
nada de aragem na esquina
e o bonsai murcha.
Sem o cérebro acima do pescoço do homem,
só há o horror da página branca.
Sem o amor, o fogo do homem torna-se imundo
e os lagartos mordem a própria língua.
Sem os acordes a palo seco de uma viola flamenca,
unicórnio, espírito santo e o Ur-canto inexistem.

Sem estrelas nem vendaval a noite é apenas escura.

O vendaval,
mesmo sem os acordes a palo seco de uma viola flamenca,
o vendaval,
numa rasante que encurva as árvores,
o vendaval é o único que existe.

Fernando José Karl

quinta-feira, 12 de julho de 2012

A falência do indivíduo


Em meados do terceiro século AC, os romanos haviam dominado toda a península itálica e lançaram-se à conquista da Sicília. A ilha, então, era dos cartagineses, que dispunham de ampla vantagem de tropas e armas em terra, também eram os senhores do mar, contando com numerosas embarcações, muito bem equipadas e pilotadas por experientes marinheiros. Já os romanos lutavam com ferocidade no campo, mas eram nulos nas batalhas navais. Mesmo assim, nos 14 anos de guerra que se seguiram, aprenderam a arte da marinharia e derrotaram os cartagineses sucessivamente em todos os ambientes, tomando-lhes as possessões da Sicília, Sardenha e Córsega, e o domínio dos mares, chegaram a desembarcar na costa da África pondo em perigo a própria Cartago. Nessa ocasião, um mercenário de origem espartana foi contratado para fazer frente aos invasores. Imediatamente ele diagnosticou a origem das derrotas nas estratégias equivocadas dos comandantes e não na fraqueza das tropas. Sob o seu comando, os cartagineses lograram impor uma primeira vitória aos romanos.

Essa passagem, relatada com minúcia por Políbios, no livro “História”, fez-me lembrar do quanto nosso destino está atado ao daqueles que nos lideram. Assim, ofereço-a como forma de reflexão para o momento político que vivemos. Desde os remotos tempos das cavernas, quando o homem tornou-se gregário para melhorar a proteção, conseguir víveres e sobreviver, que o indivíduo deixou de ser dono absoluto de seu destino. Uma incômoda parcela do nosso êxito pessoal depende da capacidade de nossos líderes, quer gostemos deles ou não. Agora é o tempo em que podemos fazer alguma coisa por nós. Após as eleições, as influências pessoais serão mínimas.

O mais desastroso em ser representado por um falso líder é que os efeitos mais pernósticos das suas decisões têm efeito retardado. Podemos sofrer durante anos, uma geração inteira, uma vida inteira, em função do que um sujeito fez ou deixou de fazer em nosso nome. Quase tudo que você é e tudo que você tem, o que você come, veste, a maneira como se locomove, e mesmo as ferramentas fundamentais para a percepção do mundo, adquiridas na educação, dependem desses sujeitos. Até o tempo de vida e a qualidade dela, está nas mãos deles. No entanto, não temos tempo para eles, os vemos com escárnio, repulsa e desprezo, como se fossem todos vigaristas prontos a nos enganar. Mal os suportamos na campanha e vamos votar por força da obrigação. Não se engane dizendo que o brasileiro é assim, pois o mundo está desse jeito, está em crise de representatividade, sofre fatal fragilidade das lideranças. E quando os representantes adoecem, a falência é do indivíduo: eu e você.
Joel Gehlen, escritor e jornalista

Compartilhe