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sexta-feira, 23 de março de 2012

Outono do meu tempo


Hoje é o primeiro dia do último outono de nossos dias. Outros haverá, é certo, mas até que cheguem, esse é o derradeiro. Então, vamos vivê-lo em cada desvão de dedos por onde a areia fina se desperdiça na ampulheta sem sono que resgata a duplicata de nossas horas. De grão em grão, passa uma vida inteira. O outono é uma festa sem polvorosa e se nos oferece como o pão e o sal para ressaltar o sentido e a energia que nos habitam até que o definitivo inverno se avizinhe, solerte e traiçoeiro. Os relógios de Sol giram mais céleres no outono, embora o coração, pela natureza da música, mantenha-se grave e compassado. No outono, Joinville nos cerca de um azul sem face, azul que é pura distância de outro lugar. Benditas montanhas de pedra e pluma que nos adivinham na solidão e nos velam para que não nos percamos no vazio sem fim que a abóboda do céu deixa cair sobre as noites ao luar, em plena plêiade dos naufragados.
O outono chega como um som de violoncelo, com uma gravidade que brinca em nossos ouvidos. O outono, mais até que a primavera, excessivamente contaminada pelo verão, é um momento de comunhão com a natureza, um tempo de caminhar e olhar o céu, seja noite ou seja dia. O outono é um descuido de Deus, uma janela entreaberta que nos apresenta o clima que o criador reservou só para os eleitos seus. Nada mais límpido, nada mais agudo, nada mais profundo e derradeiro que um dia de outono, pela sua densa luz, de uma coloração quente a depositar-se em nossa pele no arpejo doce de um beijo, cálido e arrepiante.
         O vento percorre as folhas das palmeiras e embrenha-se na mataria como um animal sem pele, uma serpente alada que enlaça e estrangula com violenta ternura e suave punhal de pétalas. E as folhas farfalham e se desmancham em movimentos com alegria e pânico como gestos de adeus. Como é triste o outono para quem perdeu o amor, com sua promessa de dias propícios a andar de mãos dadas ou demorar-se dentro de abraços apaixonados. Como é alegre o outono para as crianças de todas as idades que ainda brincam de “pique esconde” e correm e riem e gargalham sem as sufocações do verão.
         A tarde vem cair numa velha vasilha que deixo em pleno abandono ao meio do quintal, sem outra astúcia que estar disponível às disposições do tempo. Verte-lhe a luz como finíssima névoa dourada que dá de beber aos olhos sem ousar se deixar tocar. Uma bacia banhada em luz da tarde de outono é um inutilitário, não banha o rosto nem lava as mãos, mas purifica-me o seu olor de mirta, intenso como os banhos de Istambul em permanente repasto par os poetas: “Na abóbada da tarde cada pássaro é um ponto de recordar...”




Joel Gehlen



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