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domingo, 14 de agosto de 2011

O fabuloso silêncio da Senhorita Amélie


O dramaturgo August Strindberg mostra-se um exímio manipulador dos sentimentos humanos no espetáculo A mais forte, apresentado no sábado, na Mostra de Teatro de Joinville, Cena 8. A versão do grupo Teatro Novo Tempo, sob direção de Hélio Muniz, transporta o drama que originalmente ocorre em Estocolmo, no final do século 19, para a Paris de 1940. A nova ambientação dá-se pelo figurino e pela música de Edith Piaf, tão marcante que, por si só, ancora as personagens no tempo da França ocupada. Embora a ocupação nazista seja um elemento ausente do texto, até porque ocorre meio século depois da sua concepção, é um fator que enriquece sobremaneira a tensão dramática do espetáculo.
                Numa véspera de natal, após fazer suas compras, a mulher entra em um café para tomar um chocolate quente e acaba reencontrando uma antiga colega, Amélie, sozinha, lendo um livro. Condoída com a cena, põem-se a falar que fora um erro Amélie não ter se casado, pois poderia ser tão feliz quanto ela, que tem dois filhos e um marido fiel. Ao recordar as muitas evidências dessa fidelidade, acaba concluindo que Amélie é amante do marido. Constata que todos os gostos dele e muitos dos hábitos da família foram moldados pela amante. No breve espaço de um encontro fortuito a mulher percorre estados emocionais que vão da invejável felicidade à desgraça imensurável. Quando se vê à beira de uma vida vazia, em que nada é seu, pois a alma da amante “move-se furtivamente dentro da sua própria alma”, a esposa dá a volta no próprio raciocínio e faz o caminho inverso. Então constrói um discurso em que é real, feliz, tem uma casa, família e uma história, enquanto a outra se move sorrateira pelas sombras, à espreita de seu sobejo, sem de fato existir.
                Trata-se de um argumento existencialmente poderoso, capaz de suscitar sentimentos com muitos argumentos de ambas as partes. Afinal, tange o nervo exposto da convivência feminina, eternamente demarcada pelo orgulho, vaidade e rivalidade. Porém, só uma das mulheres fala. Um ardil do autor que torna a cena muito mais complexa e indefinível. Amélie permanece os 30 minutos do espetáculo completamente calada. Enquanto a mulher se esmera em construir com palavras a ruína da rival, a outra se defende do modo mais improvável: calando. A esposa ganha força e cresce psicologicamente conforme ataca sua oponente, para demonstrar-lhe o quanto é desprezível, Amélie encastela-se numa mudez de pedra, armada de uns olhos perdidos, alheios e cativantes. Impossível devassar-lhe os pensamentos guardados por aqueles lábios túmidos, vermelhos e selados. Não retruca, nem rebate ao seu libelo, mas o arfar do peito e o lago vítreo do olhar dizem de sua tempestade interior.
                Ora, podeis dizer, só os culpados são capazes de um silêncio tão convicto e profundo. Quem cala consente. Mas isso não basta para condenar Amélie. Também calam assim aqueles que, absolutamente tranquilos e serenados, flanam acima das oscilações do humor, infensos às paixões tempestuosas da posse. Enquanto a mulher saí de cena com alma lavada no escárnio, pelo desnudamento e a humilhação que impôs a rival, Amélie se alça em cumplicidade, ternura e condescendência.
Joel Gehlen
Editor, escritor e crítico de teatro

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