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terça-feira, 13 de julho de 2010

Vésperas de nêsperas

Quando a gente vê, é fim de agosto. Meu Deus, já se passou quase um ano e eu nem abri a janela, não caminhei até o outro lado da rua, não fui até a Misericórdia, não subi a Redenção. Quando a gente vê, é tarde para o conforto, a alma em confronto trava um grotesco bailado tenso. A alma é uma criança que não aceita estarem perdidos os tesouros; outrora, futuros; e agora, quimeras.

É quase setembro e o inverno nem veio. Coisa ruim esta de passar o ano sem ter tido um bom inverno. Há coisas, creio eu, que só medram no frio, uns sentimentos hibernais que agora se acotovelam nesta quase primavera, na expectativa dos acontecimentos essenciais, como por exemplo a chegada do tempo das nêsperas, as ameixinhas amarelas que atingem seu melhor grau de maturação e doçura no fim do inverno.
Há algum tempo venho atinando com um poema cujo primeiro verso dissesse assim: Naquele ano, às vésperas das nêsperas... Um poema que falasse a respeito das noites úmidas que alvorecem no cacho dourado das ameixeiras, prenhes de sol e que vão tomando cada vez mais uma ferrugem que o tempo lhe abotoa na cor. Seriam versos que iriam intuindo, lentamente, a forma maturada das futuras manhãs. Uma poesia que fizesse a esperança dos homens velhos e, ao mesmo tempo, trouxesse consigo o alaranjado dessas pitangas frutificadas no correr de agosto e que agora pendem à minha janela.
E com as nêsperas e pitangas chegam os sanhaços e sabiás, nos quintais de Joinville.
É quase primavera também aqui em Copacabana. Da janela do gabinete de trabalho de Ilmar, estende-se uma paisagem de telhados. Um pardal pousa no parapeito da janela. Pensei num tico-tico, ou curió, talvez vindo lá da Floresta da Tijuca ou do Jardim Botânico. Mas era apenas um pardal, um vil pardal no parapeito da janela batida de sol. Sentado à máquina de escrever, o homem é todo concentração no seu trabalho.
De chinelo e roupa branca, entre recortes de jornais, livros, discos e revistas, ele está sério atrás dos óculos. A sala suspensa numa quietude atravessada pelo trânsito lá de fora. Bia, na cozinha, não faz barulho. Dina desceu, foi para a cidade, a casa está vazia. O mundo inteiro gravita nas páginas dos jornais. A garganta de um galo cantando no morro ali em frente faz haver o vôo do pássaro: nunca mais, nunca mais.
E porque é agosto o sábado no Garota de Ipanema é cheio de reminiscências. O bar está lotado, há vozes e risadas e, no entanto, uma mesa está vazia. Ao Tom e Vinícius acrescenta-se Rubem Braga, recém-chegado do Riocentro, onde foi autografar mais uma reunião de suas crônicas.
Chope na mão, de frente para o músico e o poeta, o cronista abre a pequena antologia na página 31 e lê em voz casmurra: “Meu caro Vinícius de Moraes, escrevo aqui de Ipanema para dar-lhe uma grave notícia...” Depois, a voz submerge no murmurinho do bar. O mar anda meio agitado, a água fria quebra rugindo na areia branca. Mesmo assim há três, trinta, trezentas mil garotas de Ipanema que usam minissaia e andam pela rua que leva o seu nome, Vinícius.
O Tom, na fotografia, veste branco e chapéu de palha. Está ao lado da placa com teu nome, poeta. Logo ali é a Rua Nascimento Silva, cento e sete... Depois, faz-se um prolongado silêncio na mesa, com cada um na elaboração das coisas que não chegaram a ser ditas.
Na manhã de domingo, chove e faz frio. Uma corridinha até o primeiro bar. O bairro inteiro parece ter marcado encontro ali na esquina, jornal embaixo do braço, para o bom-dia dominical.
– Um coco, seu Júlio, e com muita água!
O português atrás do balcão salta pedaços de quadril assado no forno, uma toalha no ombro, mãos engraxadas, vai cortando as fatias em porções. As mãos vão do assado para o freezer de cerveja e daí ao caixa para o troco, e de volta para o pernil.
A chuva engrossa. Jornal sobre a cabeça, pelo abrigo das marquises, até o Marmitas. O nome do botequim na plaquinha sobre a única porta do cubículo, um balcãozinho com uma caixa registradora e a pia de lavar copos. Quatro ou cinco mesas onde se passa o domingo idealizando a segunda-feira, longe dos táxis que rodam pela cidade acompanhando a rodada do Brasileirão pelo rádio. Cerveja Boêmia e caldo de mocotó até que a chuva dá uma trégua. De fato, Rubem, a escrita não está à altura de uma beleza tão branda quanto uma tarde chuvosa, num domingo de agosto de uma emergente primavera.
Joel Gehlen

quarta-feira, 30 de junho de 2010

Ânsias de liberdade e algemas

Nunca a tinha visto antes, nem a vi depois. Chegou com voz decidida: - é uma carta de amor, gostaria que o senhor tirasse os tropeços da língua, pusesse as vírgulas no lugar e também visse a correção das palavras se estão conformes. O envelope branco, tipo ofício, sacado do bolso do macacão jeans, estendido na mão esquerda, a outra mão repousava sobre a bolsa a tiracolo. Um ar de colegial, 16, talvez 17 anos. Em vez de trancinhas nos cachos cor de trigo, trazia um chapéu de tecido azul-profundo que imitava o abismo visceral de seus olhos em porcelana.
Tentei argumentar que não era a pessoa mais indicada, onde já se viu ler a correspondência alheia, que todas as cartas de amor são patéticas, que nas entrelinhas e imperfeições é que estão os conteúdos mais humanizantes das missivas amorosas. Ela fez pé firme. - Você teeeeem de ler. E apelou para a candura, o jeito de menina. Não mostraria a mais ninguém, nem à mãe ou mesmo à Aninha. – Taí - argüi - uma amiga é... Ela se riu em malícias fêmeas, depois ameaçou arrancar os olhos de qualquer mulher que lesse aquilo, e por fim explicou que Aninha era sua cadela beagle que só faltava falar.
Bom, que jeito. Esqueci a pressa, ela deitou a bicicleta na sombra e sentamos na mureta de pedra. A carta estava datilografada numa folha de caderno, com letras irregulares, quase apagadas, em linhas que dançavam no papel, sem respeitar as separações silábicas nem as maiúsculas após os pontos. Apesar do aparente caos, não pude deixar de perceber que suas frases sabiam aplicar “jebs” no queixo do leitor.
Ela, ciente do estrago de que era capaz, preferia olhar para as formigas, fingia estar distante, rabiscava qualquer coisa na laje do muro, mas acompanhava tudo pelo ritmo da minha leitura. Quando terminei de ler pela terceira vez, ela tomou a folha da minha mão e picou-a em mil pedacinhos. Depois, pedalou sem olhar para trás, deixando escorrer pelo ar o papel picado, fragmentos de uma carta sem remetente nem destinatário, que dizia mais ou menos o seguinte:
“Resolvi lhe perdoar pelos seus olhos de cais noturno, lânguidos, úmidos e possuidores de uma eterna promessa de partir, de chegar e de nunca estar satisfeito, senão no próximo porto e ainda outro e outro mais. Resolvi lhe perdoar, porque há ferrugem nas folhas das árvores da minha rua, e este cobre sobre a paisagem põe-me indefesa desde a primeira hora da manhã. Porque saio de baixo das cobertas e vou escovar os dentes sem roupão, para ver se pego uma gripe, uma febre alta, qualquer dor maior que me traia e distraia de você. Resolvi lhe perdoar porque ontem quebrei o aquário onde o peixe-pau-pra-toda-noite-de-insônia sorria. Depois, juntei os cacos de vidro para alisar a pele e esperar ansiosa pela presença de sua carne na minha navalha. Só porque, de repente, num estalo, eu me lembrei do sabor de suas sementes e do meu adorado campo de trigo acariciado pelas idéias mais sedosas com as costas dos dedos alísios. Lembrei também de seus ombros e da qualidade de seu abraço que me fez escrava. Estou faminta e preciso saciar este coice indomável, sentir em mim o peixe-fora-d’água, respirar com dificuldade, apelar para a ducha fria na madrugada, escorregar até o ladrilho e me fazer esquecer. Aos poucos, meus caldos se aprontam. Como um Vesúvio, rondo os subúrbios do fogo. Estou cansada de explodir contra o espelho vazio, por isso resolvi lhe perdoar. Porque o inverno vai passar, a primavera vem aí e tenho o amor em ânsias de liberdade e algemas.”
Joel Gehlen

terça-feira, 22 de junho de 2010

Pra pedir perdão

Na noite passada não vi a lua. Era um sorriso de orelha a orelha rasgado no céu, ouvi dizer. Um sorriso de prata definitivamente perdido no firmamento, pois a lua é de quem vê e não a vi. Ficou para sempre esquecida dos meus olhos a emoção que viria com a sua mirada, as lembranças boas – pois a lua é o lugar de memoráveis momentos – tê-la visto seria um instante de paz num mundo de guerra. E, como diria Lupcínio, não vá pensar o leitor que a guerra de que estou falando é aquela feita por tanques e canhões. Mas da artilharia de mesquinharia em que nos engalfinhamos todos os dias. O fato é que somos mesquinhos porque somos egoístas por natureza. Farinha pouca, meu pirão primeiro, diz o dito. E vivemos um tempo de absoluta carência das farinhas da convivência.
Faltam nas prateleiras a farinha da gratidão, da generosidade, do bom senso, da humildade, do perdão. Assim, ligamos o carro e saímos xingando, porque estamos atrasados e o trânsito não anda. Há um homem taciturno e não lhe oferecemos a côdea de compreensão, mas o amargo de uma palavra mal cuspida – traste! O moço que faz malabarismo na esquina poderia ser um instante de graça e distender os músculos da face dos que passamos. Caso atiremos um níquel, ele agradece; mas se o chapéu volta vazio, não pragueja nem desiste, faz mesuras e insiste, engole fogo e arrota esperança. O sinal se abre e arrancamos aliviados sem notar-lhe as necessidades e desejos. Terá fome? Terá filhos que não têm leite? Fuma crack? Toma pinga? Sonha ser artista? Tem para onde voltar depois da esquina? Não há tempo para saber, estamos em guerra, contra o trânsito, contra o ambiente no trabalho, contra o concorrente, contra as contas a pagar.
Tento dizer que não vemos as pessoas como seres humanos, e da mesma forma não somos vistos por elas, assim, construímos um mundo cada vez mais intolerante e nos fazemos explosivos a troco de nada. E nos viciamos em nós mesmos, necessitando doses cada vez maiores de cinismo, com beijos e abraços cheios de calor e falsidade, e nos tornamos cada vez mais desconfiados, solitários, tristes, vazios e incapazes de dar o primeiro passo. E nos tornamos irreconhecíveis. A vida não é só isso pelo que se briga, mas também aquilo que se nos oferece desinteressadamente e que estamos perdendo a capacidade de perceber. Como ver uma fase da lua, uma face da rua, uma frase do sol derramando seu ouro nos contornos oblíquos do outono que se despede, porque tudo se despede para nunca mais, inclusive os sonhos e a pelo que nos encerra. Não, caro leitor, não escrevo para acusar, mas para reconhecer: tristemente me confesso cada vez mais imerso nesse ser que repudio.
Joel Gehlen
Publicado dia 21/06/2010 no Jornal Notícias do Dia

terça-feira, 15 de junho de 2010

Uma rosa para setembro

Cara leitora, próxima ou distante, estou soterrado no tempo, mas, esta manhã, explodiu uma rosa em meu jardim. Uma rosa rosa, rasa, simples, como sói acontecer às rosas. Bem em frente à janela de trabalho, ela sopra seus alísios que imagino perfumados. Já que as rosas não fabricam cheiro, ela sobra no êxtase puro de ser simplesmente, bastada naquilo que a fere de vital beleza: sua efemeridade. Enfim, querida leitora, essa rosa trouxe saudades, e te escrevo para dar a grave notícia deste florescer rompendo o peito do inverno que ainda nos encobre com seu metal distante, embora setembro seja o nosso ninho.
Olha, é quase manhã, e essa rosa enorme, maior que meu planeta, incendeia o jardim com sua solidão acompanhada de outros três botões de rosa, promessa tênue de um dia sermos um quarteto, estourando em profusão sua antiga cor. Uma rosa solitária na matéria fria da manhã rompe o casco deste dia modorrento. Uma rosa e três botões, mais nada.
Esse silêncio todo me deixa intrigado. Depois, passa a ser incômodo, até desesperador. Sei, sou eu quem o engendra com meu silêncio ainda maior. Todas as desculpas do mundo – inclusive dizer que estou até estas horas trabalhando em frente ao computador – podem justificá-lo, mas como dói. Não estou escrevendo para justificar. Só queria dizer que, a nosso modo, morremos todos a morte horrível daqueles marinheiros russos nos mares gélidos da solidão. Quem de nós tomará a iniciativa de acionar os escafandristas noruegueses?
No entanto estamos aí, escoando fininho feito areia pelos vãos dos dedos, nos escombros do tempo. Foi então que, já com a manhã soprando sua luz difusa, dei comigo de te escrever, assim sem assunto, sem perguntar nada, sem ter resposta alguma, sem vontade de dizer do frio ou do calor dessas plagas, sem sucesso ou infortúnio para anunciar. Escrever apenas para dizer que estou aqui, sempre o mesmo, atolado nas mesmas amarguras. Escrever, enfim, porque estava com saudades de um universo compartilhado, insubstituível, de um universo com seres humanos generosíssimos, tão necessários e que, às vezes, parecem não existir.
No último instante, à maior claridade, pude divisar entre as ruínas do breu essa rosa pálida, irmã afetuosa que amanhã enfeitará nosso fim. Nesse momento estou a arrebatá-la com os olhos para você, bela e frágil rosa de todos os tempos, cravada no peito do inverno, em completa quietude.
Joel Gehlen

quarta-feira, 9 de junho de 2010

Silêncio

O pré-requisito para ser cronista é ter opinião sobre tudo, e isto inclui coisas sobre as quais você não tem opinião nenhuma. Se de tudo que há no mundo, a maioria desconheço; e do pouco que sei, a maioria desconheço a essência, há semanas em que escrever se torna quase um martírio. Há semanas em que o cronista sente-se melindrado por ter opiniões próprias, e que por serem próprias podem ir contra a maioria. Em tempos de democracia, ser minoria é um erro.
Crônicas não têm propósitos científicos, são opiniões pessoais, muitas vezes pessoais demais. E toda exposição é arriscada. Nos dias de hoje o risco está além do pensamento, na palavra. Expressões outrora banais são agora politicamente incorretas e podem colocar em quem as profere rótulos. Mas já que estou aqui e você está aí querendo saber a opinião do cronista, creio que tenho a obrigação de ir adiante. E vou.
Esta semana, em uma mesma sessão da Assembléia Legislativa, votava-se a favor de uma lei para proibir as pulseirinhas do sexo, aquelas coloridas que contêm códigos criativos e um tanto explícitos sobre o tema. Na mesma sessão, minutos depois, um deputado retirava de seu discurso a expressão “Samba do Crioulo Doido”, imortalizada em 1968 pelo cronista Sérgio Porto, mais conhecido por Stanislaw Ponte Preta. Seu samba satiriza as mazelas dos compositores de escolas de samba que tentavam retratar a história do Brasil.
O que uma coisa tem a ver com outra: as pulseiras, deputados, não são as culpadas! Vocês estão mascarando a realidade e fazendo performance para a mídia. O problema é mais profundo e tem a ver com a educação de nossas crianças, com o acesso à informação no tempo errado. “Isso é conversa de adulto”, que tantas vezes ouvi de meus pais, sumiu da boca dos pais de hoje. Está-se querendo punir pulseiras! Esta lei mal poderá ser cumprida. Ou vão colocar policiais algemando crianças que as usarem? As soluções imediatistas não são mais do que soluções paliativas. Neste caso, nem solução me parece.
E o crioulo, o que tem a ver com isso? Bem, o crioulo faz parte desse grande balaio de gato que se tornou a ética e a moral de nosso tempo, por que, ao mesmo tempo que se trava uma luta infame contra pulseiras coloridas, proíbe-se o uso de expressões inócuas até então. Nem tudo que sai da boca reflete o caráter de quem pronuncia, nem tudo no mundo é resolvido com lei. E eu só queria me manter em silêncio desta vez.
Jura Arruda
Publicado dia 17/04/2010 no Jornal Notícias do Dia
Radicado em Joinville desde 1984, escreveu para teatro e vídeo, participou de publicações literárias e é autor do livro infantil Fritz, um sapo nas terras do príncipe (Editora Letradágua). Atualmente é cronista do Jornal Notícias do Dia.




terça-feira, 8 de junho de 2010

Noturno em silêncio maior

Wilson Bueno é o magnífico prosador, o melhor dentre os melhores. Agora, todos saberemos que assim o fora, pois a morte destina a tudo. Mas não venho falar da sua obra, que essa fica, permanece, suplanta o homem e o monumenta. Os livros estão aí, ao alcance dos dedos dos olhos do coração. Quem ainda não viu, que agarre agora e repare. O ausentado é o amigo – o amigo bueno – o ser de imensa ternura e permanente afeto, delicado e comedido, reconhecendo sempre a iminência dos acontecimentos maiores, polido e gentil. Afeiçoamos-nos em anos de crônicas, romances e poemas. Sempre o ofício de escrever, espinhento ofício em sobrevidas, sobressaltando as inumeráveis lidas.
E de repente a noite abriu sua boca sobre nossas cabeças. Uma noite úmida, viscosa e longe de casa. Uma noite dolorida, feita da sua ausência, da sua perda, da sua partida. Exatamente às cinco de la tarde, como naquele poema do Lorca, em frente à igreja da Ordem Terceira do Rosário a noite se fez da insofismável substância da sua ausência. O vento vindo do Leste açoita um borrifo úmido que não era chuva, mas a suspensão dos olhos a te velar. Não vi a máscara de cera em que te recolhestes definitivamente cerrado, olhei a rua abaixo com suas luzes tímidas num bruxuleio de ficção. O Largo acima com seu cavalo d’água, centenários pinheiros ao fundo, o espaço deserto do campanário onde nenhum dobre vinha anunciar sua partida. Incréu cenário de vigília e ausência. A noite cachorra, de uivos fundos e funesto silêncio, pousou sua mão sobre a nuca da cidade, num conduzir de conciliação e degredo.
Querido Wilson, tardiamente trago essa notícia de que esses têm sido tempos ruins, por não caber neles espaços para os que queremos bem, por não caber neles ocasionalidades, um bem-querer sem-cerimônias, um afeto que se nutre de afetos. E esse tempo doente em que nos consumimos todos, quanto mais passa menos ultrapassa, se acumula tentacular como a metástase devastadora que nos impede gestos essenciais, como um simples contato por telefone, um correio eletrônico ou a postagem de umas linhas no papel, à moda antiga. Qualquer gesto nos salvaria do mal desse mau tempo, mas estamos cada vez mais tomados por seu fel. Então a indesejada das notícias chega, uma lâmina inapelável e breve e nada mais há para se fazer senão dar a cara ao vento Leste, úmido, frio e noturno.
Fora isso, só o reticente silêncio. Mesmo na ausência, o coração sempre latindo, Buenamente!
Publicado dia 07/06/2010, no jornal Notícias do Dia, por Joel Gehlen.

terça-feira, 1 de junho de 2010

Culpas inocentes

Um gesto não feito, uma mão que não foi estendida, uma boa vontade que não houve. Enfim, mínimas corrosões do caráter, esses defeitinhos com que todos saímos de fábrica – e o primeiro deles é achar que não temos defeito nenhum – e que causam grandes dissabores, podem estragar dez minutos de uma vida ou uma vida por inteiro, sem que o algoz sequer saiba das consequência de sua omissão ou de sua ação. Ou saiba, mas releve, face à vida também embrutecida por pequenos detalhes que ninguém dá a mínima. Inocentes detalhes, nem por isso menos culpados.
Ah, os pequenos poderes, como são deletérios. Pessoas encasteladas em seus diminutos feudos, pode ser um simples carimbo, uma assinatura, olhar no crachá e dizer pode ou não pode, marcar uma hora, responder tem ou não tem. Enfim, detalhes, mas esse é o seu poder e será manejado com absoluta destreza para causar o mal, com a desculpa de que está cumprindo o seu dever, que este é o regulamento e blá-blá-blá... Todos nos indignamos se um médico deixa de salvar um paciente, mas ninguém fala nada se uma pequena atitude deixa de ser tomada e isso destrói a vida de uma pessoa. O diabo mora nos detalhes e ele é mais comum do que possamos imaginar.
Sujeito atende numa repartição pública e se diz bastão da legalidade. Ah, a lei, esse pântano fétido e movediço que dá azo a quantas interpretações forem necessárias para inocentar ou condenar, dependendo apenas da intenção de seu interprete. Como um César, Sujeito tem o poder da vida ou da morte no polegar. Positivo ou negativo na mesma mão, no mesmo dedo e no mesmo caso, na mesma lei! E o sujeito olha para você com cara de reticências, um meio sorriso na boca, as mãos vazias e desesperantes. A injustiça é mais que um soco no fígado. A quem recorrer?
Sujeito trabalha na guarda municipal, recebe um boné, uma fada azul e um bloco de multas. Deveria ser um agente de trânsito, orientar, educar, por ordem e, em último caso, multar. No entanto, ardilosamente se acoitam atrás dos postes, na sombra das árvores, no vão dos becos, de bloco empunho, multando indistintamente. Depois, o cara recebe a multa em casa, se irrita, briga com a mulher, bate nos filhos, chuta o cachorro, sai de cabeça quente, amargurado, qualquer desgraça pode acontecer: bater o carro, perder o emprego, dar um tiro em alguém. E o guarda palita o dente e arrota, enquanto anota multas num canto qualquer da cidade.
Devíamos prestar mais atenção no tal “efeito borboleta”, segundo o qual um inseto bate as asas na Ásia e, aquela mínima, inocente inintencional movimentação de ar provoca um furacão no Golfo do México, causando morte e destruição.
Joel Gehlen
Publicado dia 31/05/2010 no Jornal Notícias do Dia

quinta-feira, 27 de maio de 2010

Aqueles olhos negros

Um dia veio a morte e levou-a. Com fastio, nem olhou no rosto antes de tocar-lhe os olhos onde duas lagoas calmas boiavam em serenidade. A menina, no leito, sonha com tigres de bengala e nem nota a passagem para o andar de cima, apenas percebe que a brincadeira ganhou asas. Nem carecia do espanto dos que ficaram. Coisa mais certa era a morte vir para aqueles olhos que nunca se cansaram de contentar-se. Olhos grandes, bem maiores que o rosto. Olhos que tinham fome, que tinham sede, que tinham pressa de se dessedentar: queriam ver coisas que nunca veriam. Ah, a angústia de saber-se tão breve, bem mais efêmera que as coisas necessárias de se olhar. Olhos que amavam Wilka e que se enchiam de brilho quando podiam estar lá em casa. Mas humildes, conscientes de sua urgente finitude, recompunham-se no caminho da volta. Ia pela ruazinha de terra, sem outro encanto que as poças d'água, onde adivinhava as nuvens do céu.
Não era uma menina completa, era especial. O corpo todo possuía uma ausência de simetria muito própria. Nos braços, no peso, na estatura, era como se tivesse sido desenhada a lápis de cor, num traço sem precisão, por um deus infante. Não era bonita, contudo havia nela uma doçura das coisas inconclusas que só as crianças sabem ter. Ausente de qualquer vaidade, era seu corpo um círio ardendo. Tinha o espírito irrequieto de criança dentro de si. Depois da chuva, descia a rua esburacada, vinha de pernas tortas, vinha com seu casaquinho de tricô rosa, com seu chinelo de dedo, com sua ternura demasiada e uma tampinha de Coca-Cola apertada na mão pequeninha.
Mas, repito, não carece de gastar espanto com essa alminha de passarinho. A menina já nasceu condenada, embora sejam desconhecidos os desígnios e os motivos de quem executou a sentença. Carrasco inábil, não lhe acertava a cutilada mortal. Pobre mãe, a cada tentativa da morte, pensava tê-la enganado.
A menina nasceu a lhe faltar um pedaço do intestino. Teve que fazer três operações nos três primeiros anos de vida, coisa delicada. Algo deu errado – sempre dá –, sofreu as conseqüências do erro em cada um dos seus poucos futuros dias.
Dores, desenvolvimento irregular, muitas idas e vindas ao hospital, outras operações, sempre doente, magra, minguando a olhos vistos sem nunca chegar a ir-se. Os ossinhos crescendo irregulares dentro da pele em cortume. Desenganada? Que nada, havia nela uma enorme, uma incomparável, uma inexplicável, uma incorrompível vontade de viver. Havia nela a pulsão de vida a alimentar-lhe as veias. Driblou a má vida, cresceu como Sheerazade, numa astúcia secreta de enganar a morte.
Era uma menina como as outras. Escola, andar de bicicleta, colecionar surpresinhas de plástico que vinham dentro do Kinder Ovo, ver televisão, pular amarelinha. Gostava de pipoca e tomava muitos refrigerantes no bar em que morava.
Um dia mudamos da Carlos Klinger. Vi-a ainda uma vez. Depois, nunca mais. Um dia, caiu enferma. Hospital, UTI, coma. Palavras medonhas para um ser mais frágil que uma borboleta. Mas ela queria viver. Quando o pior era iminente, a menina surpreendeu a todos. Melhor, voltou para casa. Ufa.
Mas o alívio não chegou a se completar. Retornou ao hospital. Coisa pouca, um pequeno resfriado contraído no inverno úmido de Joinville. Uma gripe de nada, para que se preocupar? Mas o pulmãozinho ruiu, ceifando aqueles dois olhos negros onde toda uma vida tentava consumir-se, e era tanta vida para tão curtos anos.
Morrer aos seis anos é de uma tristeza que emudece.
Joel Gehlen

terça-feira, 25 de maio de 2010

Sentinela de maio

Esta semana passei uma hora inteira diante desses umbrais de Garuva. Digo umbrais porque rima com Urais, aquela cadeia montanhosa que divide o gigantesco território russo, mas, o que quero dizer mesmo é Serra Dona Francisca. Os nomes são apenas convenções sonoras. O que aproxima estas montanhas que nos flanqueiam, e os Urais e os Alpes e os Andes é o manto de mistério que as envolve e as mitifica. Podem os homens vence-las em passos de alpinista, sobrevoa-las com maquinas ou balões, mas jamais penetrar o seu surdo encantamento, senão na contemplação e reverência; senão em deixar que o espírito – o distante e combalido espírito que ainda nos habita – perceba e se integre ao espírito da montanha.
Seria apenas um contorno verde contrastando o azul salpicado de brancas nuvens, um recorte irregular desdobrado em camadas de diferentes tons até alcançar o opalino enredado na névoa. Mas essa é uma miragem, o cerne da montanha está mais além, está diante e dentro, entre e adentre. Diante da montanha não há emoção nem poesia, há apenas a sua presença eterna, que nos precede e que ali estará muito tempo depois que formos apenas poeira. Poeira de extintas lembranças. Sua imensurável quietude nos enlaça, nos imensa e nos perpetua desde que saibamos nos ater sem as amarras anciãs do tempo, livres de relógios e adornos. A montanha é infensa a reverências, nem seitas, nem ritos, nem cantos nem choros chegam aos ouvidos da montanha. Só a solidão lhe habita, a solidão profunda que é em si um murmúrio, um oráculo. Só o nos apequenarmos aos seus pés a comove, porque assim nos tornamos em estado de chão, incluídos no seu grão mineral.
Nesses dias de maio lavados de toda bruma a montanha se move para perto de nós, como um rio silencioso inunda as ruas, posta-se nas calçadas e avança os sinais vermelhos. Paremos a contemplar como está próxima, ao tato dos dedos, à altura dos lábios, ao alcance do ouvido. Para senti-la é preciso estar a olho nu, despojados de pressas, desapegados das lidas, desalojados das bardas, desanuviados das teimas. Nesses derradeiros e búdicos dias de maio, saiamos do casulo de conforto, da oca de certezas, da crisálida dos lares, rompamos o umbral dos desejos, e deixemos que os olhos penetrarem, livres de vontades, o pomo dos mistérios montanhosos e sintamos – por um instante que seja – este pertencimento rochoso, etéreo, vago, eterno sentinela da nossa mais pura fragilidade.
Joel Gehlen
Publicado dia 24/05/2010 no Jornal Notícias do Dia

segunda-feira, 24 de maio de 2010

Uma tarde, outro dia

Fomos à casa do poeta em Timbó, eu mais o Pita Camargo. Era um sábado à tarde e chovia. Fomos com aquele velho Toyota do Pita, que vive cheio de pedra para as suas esculturas. O poeta morava na última casa da rua, uma rua comprida que parecia sem fim, molhada de chuva. Sua casa, como em certo conto de Borges, ficava numa região fronteiriça entre o rural e o urbano. A realidade que marcou sua vida e obra estava ali. Foi uma surpresa, uma imagem inusitada, aquele pedaço rural sendo fagocitado pela urbanidade. Ali estava sua alma sonhando dentro daquele quadrado de arame farpado.

Era sábado e chovia muito. Chegamos logo depois do almoço. O poeta esperava no varandão, riscando o fósforo de seu sorriso como um personagem da literatura russa. Com uma última tragada dispensou o toco de cigarro de entre os dedos. Nos recebeu com a face luminosa e autêntica. Era cortês, sincero, afável como um camponês. A casa era simples, o avarandado rústico: uma rede, uma cadeira de balanço, um banco de madeira, outro banco, cadeiras, uma mesa pesadona, em torno da qual nos abancamos.

A tarde despejava chuva dos beirais, das ribeiras, embaciando o ritmo das horas. Eu, Pita e o poeta, na insularidade daquela varanda mergulhada em penumbra, atravessávamos o alpendre em busca do baú da memória. Erika havia preparado cuques de morango e banana, a mesa estava posta com café – café forte, café bom -, que tragávamos em halos vindos do profundo úbere do bule. O leite em porcelana mais fina que a chinesa, visto que era herança de família. Passamos a tarde entre livros, fotografias, cartas, recortes de jornais e quadros, muitos quadros nas paredes.

A certa altura a chuva parou. A varanda da casa dava para o paiol, um paiolão de duas abas, desses típicos das propriedades alemãs, todo de madeira, sem pintura, que adquiriu uma cor escura com o tempo e os maus tratos das intempéries. Havia lenha empilhada para o fogão, galinhas, um cachorro e uma vaca na estrebaria, creio que Mansinha era seu nome. Ele depositava com carinho a palma da mão sobre a testa grande do animal cujo leite acabara de nos alimentar.

Depois da chuva – e nada seria como dantes depois da chuva finda – atravessamos o curral, o potreiro, até a última cercania. Tudo era um convite para caminhar, a grama rente, encharcada da água da chuva, o mundo inteiro lavado, e a leveza da primeira brisa depois da chuva. Ele abriu o portão e nos conduziu como se penetrássemos no quintal da sua infância. Ali estava o homem em seus sessent’anos pastoreando as lembranças no pasto do menino. Debruçado à sombra sobre essa grama, leu os primeiros gibis, as histórias de Júlio Verne, esboçou no porão das emoções aqueles que viriam a germinar como os primeiros poemas.

As árvores eram as mesmas. À direita e ao fundo havia ruas, casas, a cidade ameaçadora. Mas do outro lado eram os caminhos rurais, um enxaimel centenário, os paióis, a paisagem inteira de sua meninice estava ali, velha amiga e confidente. Mais ao fundo, pontificando o horizonte, ele apontou o dedo para o Morro Azul. De repente estacou, reclinou um pouco a cabeça, encaixou o ouvido na direção do vento e recomendou:

– Ouçam, são jacupebas. Elas chegam aqui aos bandos – termina a frase num riso acanhado como em criança.

Era o mesmo canto desde a infância. E aqueles gritos com qualquer coisa de brejo e de aflito lavravam o estio, deixando a tarde ainda mais molhada. Chegamos até o meio do pasto, onde estavam as árvores maiores, as mesmas árvores sob as quais sentava para ler. Depois, fomos até o pé de fruta-do-ceilão, com a pá ele arrancou uma muda que agora medra no quintal aqui de casa. O esforço gotejava-lhe a testa de suores. O coração lhe recriminou e, entre sorridente e ofegante, ele atirou longe o toco do Derbby fumado ao meio.

O campônio e o poeta iam juntos, lado a lado num mesmo homem, lavrando os campos da memória enquanto conversávamos sobre as plantas, as aves do céu e a mata. Então, paramos para olhar, ao longe, sobre os telhados. Ah! Como são tristes esses telhados antigos após a chuva, com a cumeeira apontando nuvens e as duas-águas num caimento desolado, enegrecido pela pátina do tempo e de tanto aparar noites, dias, sóis, chuvas e luares.

Ao despedirmo-nos, o poeta veio até o portão onde se enroscavam trepadeiras no jirau. Ele explicou novamente o caminho de volta, apontando e repetindo os nomes das ruas que deviam ser seguidas. O sorriso, sempre aquele sorriso de um querer-bem infinito, afagando a despedida. A chuva parara completamente e a noite estava plácida, calma, estendida como a musculatura de um rosto enfim serenado, depois de muito chorar.

Joel Gehlen (publicado no livro Outono do meu tempo)

terça-feira, 18 de maio de 2010

Orlando Alves e as couves do quintal

Herdei a metade da biblioteca de Orlando Alves. Ele se foi num 11 de maio, exatamente no dia do meu aniversário, passamos a madrugada juntos na gare derradeira: ele partia, eu ruminava. Orlando Alves foi uma pessoa de incomparável erudição livresca que encontrei nessa Joinville em 1994 quando vim de Londrina para fundar o caderno Anexo. Ao formarmos o time de cronistas foi um dos convidados. Ao lado de José Silveira e Lelito Nóbrega, formavam um triunviratum da palavra, da escrita, da leitura e da conversa, os três à época adentrados nos umbrais septuagenários dessa vida; os três, hoje, já selecionados pelos mistérios da ausência derradeira.

Filho de Joinville, Orlando fora um pioneiro e bem sucedido homem de comunicação no Rio de Janeiro e em São Paulo, depois voltou para olhar a chuva e se aquecer ao sol na terra de seus “opapas”, ao lado de sua mais que amada Izolde. Aqui queimou a derradeira luz dos olhos, lenta e amorosamente, em intermináveis deambulares por estas páginas que agora espreitam-se da e minha estante. São livros de história, sociologia, filosofia romance e poesia. Há portentosos títulos como as mil páginas do “Guia da Música Sinfônica”, uma de suas paixões; os muitos tomos sobre história romana e da Segunda Guerra. Para além das milhares de palavras que os compõem, há um conteúdo orlandiano nesses livros: um bilhete aqui, um traço sublinhando ali, uma pequena notícia de jornal deixada acolá... Mas acima de tudo há essa presença que não deixa pegadas, a começar pela escolha de cada um destes livros. Um dia seus olhos se aninharam com doçura sobre estas lombadas numa livraria, depois desdobraram fibra a fibra o coração das idéias. Orlando tinha uma convivência física com os livros, amava o cheiro, a textura, o formato, o som do papel. Ainda escrevia a lápis para poder sentir o toque do grafite deslizando sobre a folha feito quilha a desbravar os mares da fantasia. Seus textos eram os únicos que chegavam na redáção em caracteres irregulares de uma velha máquina de escrever.

Era uma estranha e perfeita simetria de pomerano e luso, conjugando um coração farto e sentimental com rígidos quereres. Um homem simples e complexo. Cultivava as próprias couves e ligava lá no jornal: “ô, Joel, venha com a Wilka comer um caldo verde preparado com as couves do meu quintal”. E punha um sabor, uma alegria, uma incontida felicidade ao depor estas palavras sumarentas. Íamos. Também o Melatti, o Ruiz e o Karl. Frio de maio, vinho de colônia e couves do quintal. E, claro, livros, livros e livros, os mesmos que me olham agora numa orfandade que a minha mão afaga mas não mitiga.

Joel Gehlen

terça-feira, 11 de maio de 2010

Felicitações de maio

Passei a primeira infância na casa velha de madeira. A casa que rangia a cada passo, que mordia a curiosidade nas noites de lua, nos dias de sol, nas dardes vazias. Casa que dançava às tempestades e que abria-se à brisa do alto verão fazendo seu cortinado passear por entre os cômodos. Casa densamente habitada por tantos irmãos filhos de Aldino e Maria. Casa coração de mãe em que a cada ano cabia mais um irmão. Casa velha, sem cor, lavada pela chuva e secada pelo sol. Solitária chaminé nas franjas da densa mata. Casa em madeira, sem vidro, tijolo, nem telha. Casa de pilares grossos, doze cepos de lenho, imensamente maiores que o espaço que meus braços podiam abraçar. Ali, no porão, a terra dura, estorricada, jamais visitada pelas chuvas. Ali as galinhas, ali os gatos, ali os cães, ali o eu menino. Ali o menino brinca sozinho nas azas da imaginação. Ali refúgio do menino para chorar uma mágoa passageira com a testa de encosto ao pilar. Ali horas e horas nos dias de chuva, espiando a água cair, rolar pelo chão, formar enxurrada, encontrar outras águas, formar ribeirão. Ali acudir-se em fugas de castigos, de puxões de orelha, de chineladas. Ali refugiar-se de visitas. Ali bicho do mato: ninguém me pega, ninguém me vê. Ali o medo de escuro em noites de lobisomem. Ah, casa velha da mais funda infância, tão solar, arejada, aconchegante e tão profundamente misteriosa. Ali as febres mais medonhas, o avizinhar-se com a morte, as tardes solitárias, febris, febris, febris. Todos iam para roça, os que trabalhavam, os que inda brincavam à sobra de grandes árvores, o neném – sempre havia um – dormindo no cesto de milho à mesma sombra preferida por cobras cascavéis e urutus e aranhas. Era preciso estar atento. O menino com febre ficava em casa, nada doía, mas aquele frio com calor botava um medo na gente. Um medo ruim de estar sozinho. Um medo de dormir e sonhar com o fim do mundo. Sempre o mesmo sonho, o mesmo fim. O calor, a febre, o calafrio e o tempo escoando lento feito maré, lentamente inexorável o tempo avança. A casa velha range como um navio fantasma, singra na brisa que eleva a cortina branca de filó, a cortina de fitas multicoloridas e sobe na cama de colchão de palha em que o menino sua só, em solidão de náufrago. Então um galo, encorajado de abandono adentra a porta da cozinha, atravessa a primeira cortina, avança lento na réstia de sol. Mais velho que eu, o galo é da família. Estou salvo. Infinita casa minha da infância, que me habita, e que giro a chave na porta a cada 11 de maio.

Joel Gehlen

quinta-feira, 6 de maio de 2010

Carta para Kenzo

Andava por aqueles dias com uma fadiga permanente. Travava uma dura batalha contra a hepatite e, para salvar o fígado, meu corpo inteiro tinha de morrer um pouco. Perdi 20 quilos, a força, os cabelos. Mas a vontade, resistiu. A vontade de atravessar a longa noite de 365 dias. Eram 4 comprimidos de Ribavirina por dia e uma injeção de Interferon – que eu mesmo me aplicava – por semana, sempre às quartas-feiras. Era para ser uma coisa simples: encontrar um pedaço de couro macio na perna, limpar o local com algodão embebido em álcool, e enfiar a agulha com a seringa inclinada para não pegar no músculo, então injetar seu conteúdo até o final. O efeitos colaterais são irresistíveis, crescentes e acumulativos.
A primeira aplicação foi um vexame. Retirei o medicamento da geladeira, ajeitei-me em uma cadeira, o algodão com álcool, a picada, mas não consegui aplicar. Resmunguem qualquer coisa, fui pra lá, vim pra cá, mas acabei descendo o morro para a aplicação em uma farmácia. Dali para frente, firmei o pulso e não precisei mais recorrer a farmácias. Embora, com a candente perda de peso e a reincidência das picadas, o local ficasse roxo e dolorido. Paciência.
A primeira aplicação foi no dia 4 de fevereiro de 2008, dali a 9 dias você nasceu, em 13 de fevereiro. Ou seja, tudo que estava por vir, viria com você. Faço este preâmbulo para contar daquela noite. Você acordava quatro, seis, vezes por noite e nos revezávamos – eu e sua mãe – no atendimento. Ela dava de mamar e depois você vinha para meu colo até voltar a dormir. E isso podia levar 15 minutos ou duas horas. Embalava-o mais com músicas de cabaré que com canções de ninar. Exaurido, muitas vezes dormia sentado, contigo no colo.
Naquela noite a fadiga estava especialmente presente: uns sintomas de gripe, calafrios, uma febre constante, as juntas doídas , os ossos mal sustentados. E quedê de Kenzo dormir. Muitos nanas-neném em ritmo abolerado, mas, ao deitá-lo no berço, punhas os braços para cima e um sorriso nos lábios, um desenho sutil, uma discretíssima inclinação das terminações do risco da boca, um arqueamento na tez, uma luz nos olhos. Extrema sutileza de efeito tão soberbo. Aquele teu mínimo sorrir fazia esquecer a dor, a canseira, o sono. Enfrentava mais uma sessão de bolero, iluminado e feliz: encantado ao lado seu.
Publicado dia 03/05/2010, no jornal Notícias do Dia, por Joel Gehlen.

sábado, 1 de maio de 2010

Casa de Água

A partir de sua estréia A Ilha dos pássaros ao sol, em 1981, Karl se consolidou como um dos mais produtivos e premiados poetas de Santa Catarina, tendo 12 obras publicadas e quatro dos principais prêmios da poesia brasileira: Concurso Nacional Helena Colody (1990), Prêmio Nacional Cruz e Sousa (1996-97), Prêmio Emílio Moura (1992) e Prêmio da Biblioteca Nacional (2001).

Fernando José Karl é um dos poetas que melhor traduzem esta geração-ponte que têm os pés fincados no século que se foi e referendam este ainda pleno-mistério século da “modernidade líquida”. Sua poesia verte-se na polifonia que o caracteriza e constrói imponderáveis desvãos povoados de solidão e mistério; sítios erigidos em ruína, rumores e ruminações.

Quanto: R$ 20,00

Onde: Editora Letradágua

quinta-feira, 29 de abril de 2010

O canil ficou vazio no fim do corredor

Câncer.

O Dr. Luiz diagnosticou. Uma semana depois o canil no fim do corredor ficou vazio. São 15 passos entre a escrivaninha e o canil, o espaço inabitado adquire uma penumbra, consolida-se em meandros obscuros, um limo que sempre esteve ali só agora aparece com sua notícia de desalento e abandono, algumas folhas de palmácea forram o chão ampliando o vigor da ausência.

Dias de chuva. Seguidos dias de muita chuva. Nem seu pavor de molhar-se o moveu mais. Ontem à noite ele já não entrou na casinha, não bebeu, não comeu, não tomou os remédios. Os olhos tristes – tristíssimos – vaga-lhe uma expressão de torpor, de angústia, de entrega de “deixe-me ficar só, com a minha dor”. Não, não eram olhos de medo, talvez um pedido de “acabem logo com isso”. Mas soube esperar sua hora com aquela altivez de Setter Gordon que lhe acompanhou a vida.

Estava em Florianópolis, Wil ligou dizendo que fizera um acolchoado de toalhas, mas ele não reagiu, estava com o pescoço rígido, os olhos fundos e mudos. Disse-lhe que era melhor chamar o Dr. Luiz. Ele veio e o Anu se foi. De volta a Joinville, fui vê-lo. Era no chão um amontoado de ossos recoberto de pelos negros. Os olhos leitosos, muito abertos, mirando a noite funda. Meu Deus, toda candura do mundo deposita-se nessas formas já em decomposição.

Esta perda é em mim que se abate. À noite, ainda ouvimos suas patas longas demais batendo nas paredes quando se vira em seu sono agitado. Posso senti-lo como se estivesse aqui, o seu silêncio cheio de si, o denso respirar, suas passadas leves como uma pluma negra.

Pela manhã, o Kenzo pega-me pelo dedo, vamos até o canil, ele aponta o escuro vazio da casa em seu silêncio baldio. Aos dois anos, que memórias terá de Anu?

Um pedaço de mim morreu. Eram planos simples: ele e o Zeca, um branco e outro preto, a correr, a brincar no gramado, subir até onde a frondosa árvore majestasse em sombra, poder deitar na relva e ver o excelente azul da abóbada como uma lona de circo sobre nós. Dar-lhes um banho de mangueira em um dia de sol e muito calor. Tudo isso morreu. Não houve sítio, gramado, nem a minha disponibilidade. Aquele ser que me sonhara, não houve. E se uma esperança houvesse de um dia vir a ser, está morta. Por isso o repicar das palavras do poeta John Donne, numa adaptação livre: a morte de qualquer cão me diminui, porque o cão humaniza o gênero humano.

PS. Escrevo esta primeira crônica na sexta-feira pela manhã, dia de São Jorge (Oxossi e Ogun), primeiro decanato de Touro, abril – o mais triste dos meses – pleno outono. Bom dia para começar. Bom dia para recomeçar.

Texto de Joel Gehlen, publicado no Jornal Notícias do Dia, dia 26/04/2010.

Bebinho, Mamadinho e o velório de Bafo de Alho

Luiz Taques

Contos - 2008

Ilustrações: Jacinto

Quanto: R$ 15,00

Literatura regional ambientada em Corumbá (MS), retratando o universo de personagens marginais, como bêbados, prostitutas, trabalhadores braçais que, em suas vidas miseráveis, lutam para sobreviver e manter a dignidade em relação ao resto do mundo.

Onde: Editora Letradágua


sábado, 10 de abril de 2010

Feira do Livro

Feira do Livro 10 /Abril/2010
Silvio Melatti, Joel Gehlen e Fernando José Karl.



Feira do Livro 10 abril 2010
Silvio Melatti, Joel Gehlen, Caco de Oliveira e Ilca Soares

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