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quinta-feira, 27 de maio de 2010

Aqueles olhos negros

Um dia veio a morte e levou-a. Com fastio, nem olhou no rosto antes de tocar-lhe os olhos onde duas lagoas calmas boiavam em serenidade. A menina, no leito, sonha com tigres de bengala e nem nota a passagem para o andar de cima, apenas percebe que a brincadeira ganhou asas. Nem carecia do espanto dos que ficaram. Coisa mais certa era a morte vir para aqueles olhos que nunca se cansaram de contentar-se. Olhos grandes, bem maiores que o rosto. Olhos que tinham fome, que tinham sede, que tinham pressa de se dessedentar: queriam ver coisas que nunca veriam. Ah, a angústia de saber-se tão breve, bem mais efêmera que as coisas necessárias de se olhar. Olhos que amavam Wilka e que se enchiam de brilho quando podiam estar lá em casa. Mas humildes, conscientes de sua urgente finitude, recompunham-se no caminho da volta. Ia pela ruazinha de terra, sem outro encanto que as poças d'água, onde adivinhava as nuvens do céu.
Não era uma menina completa, era especial. O corpo todo possuía uma ausência de simetria muito própria. Nos braços, no peso, na estatura, era como se tivesse sido desenhada a lápis de cor, num traço sem precisão, por um deus infante. Não era bonita, contudo havia nela uma doçura das coisas inconclusas que só as crianças sabem ter. Ausente de qualquer vaidade, era seu corpo um círio ardendo. Tinha o espírito irrequieto de criança dentro de si. Depois da chuva, descia a rua esburacada, vinha de pernas tortas, vinha com seu casaquinho de tricô rosa, com seu chinelo de dedo, com sua ternura demasiada e uma tampinha de Coca-Cola apertada na mão pequeninha.
Mas, repito, não carece de gastar espanto com essa alminha de passarinho. A menina já nasceu condenada, embora sejam desconhecidos os desígnios e os motivos de quem executou a sentença. Carrasco inábil, não lhe acertava a cutilada mortal. Pobre mãe, a cada tentativa da morte, pensava tê-la enganado.
A menina nasceu a lhe faltar um pedaço do intestino. Teve que fazer três operações nos três primeiros anos de vida, coisa delicada. Algo deu errado – sempre dá –, sofreu as conseqüências do erro em cada um dos seus poucos futuros dias.
Dores, desenvolvimento irregular, muitas idas e vindas ao hospital, outras operações, sempre doente, magra, minguando a olhos vistos sem nunca chegar a ir-se. Os ossinhos crescendo irregulares dentro da pele em cortume. Desenganada? Que nada, havia nela uma enorme, uma incomparável, uma inexplicável, uma incorrompível vontade de viver. Havia nela a pulsão de vida a alimentar-lhe as veias. Driblou a má vida, cresceu como Sheerazade, numa astúcia secreta de enganar a morte.
Era uma menina como as outras. Escola, andar de bicicleta, colecionar surpresinhas de plástico que vinham dentro do Kinder Ovo, ver televisão, pular amarelinha. Gostava de pipoca e tomava muitos refrigerantes no bar em que morava.
Um dia mudamos da Carlos Klinger. Vi-a ainda uma vez. Depois, nunca mais. Um dia, caiu enferma. Hospital, UTI, coma. Palavras medonhas para um ser mais frágil que uma borboleta. Mas ela queria viver. Quando o pior era iminente, a menina surpreendeu a todos. Melhor, voltou para casa. Ufa.
Mas o alívio não chegou a se completar. Retornou ao hospital. Coisa pouca, um pequeno resfriado contraído no inverno úmido de Joinville. Uma gripe de nada, para que se preocupar? Mas o pulmãozinho ruiu, ceifando aqueles dois olhos negros onde toda uma vida tentava consumir-se, e era tanta vida para tão curtos anos.
Morrer aos seis anos é de uma tristeza que emudece.
Joel Gehlen

1 comentários:

Camila disse...

triste, mas lindo...

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