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terça-feira, 25 de maio de 2010

Sentinela de maio

Esta semana passei uma hora inteira diante desses umbrais de Garuva. Digo umbrais porque rima com Urais, aquela cadeia montanhosa que divide o gigantesco território russo, mas, o que quero dizer mesmo é Serra Dona Francisca. Os nomes são apenas convenções sonoras. O que aproxima estas montanhas que nos flanqueiam, e os Urais e os Alpes e os Andes é o manto de mistério que as envolve e as mitifica. Podem os homens vence-las em passos de alpinista, sobrevoa-las com maquinas ou balões, mas jamais penetrar o seu surdo encantamento, senão na contemplação e reverência; senão em deixar que o espírito – o distante e combalido espírito que ainda nos habita – perceba e se integre ao espírito da montanha.
Seria apenas um contorno verde contrastando o azul salpicado de brancas nuvens, um recorte irregular desdobrado em camadas de diferentes tons até alcançar o opalino enredado na névoa. Mas essa é uma miragem, o cerne da montanha está mais além, está diante e dentro, entre e adentre. Diante da montanha não há emoção nem poesia, há apenas a sua presença eterna, que nos precede e que ali estará muito tempo depois que formos apenas poeira. Poeira de extintas lembranças. Sua imensurável quietude nos enlaça, nos imensa e nos perpetua desde que saibamos nos ater sem as amarras anciãs do tempo, livres de relógios e adornos. A montanha é infensa a reverências, nem seitas, nem ritos, nem cantos nem choros chegam aos ouvidos da montanha. Só a solidão lhe habita, a solidão profunda que é em si um murmúrio, um oráculo. Só o nos apequenarmos aos seus pés a comove, porque assim nos tornamos em estado de chão, incluídos no seu grão mineral.
Nesses dias de maio lavados de toda bruma a montanha se move para perto de nós, como um rio silencioso inunda as ruas, posta-se nas calçadas e avança os sinais vermelhos. Paremos a contemplar como está próxima, ao tato dos dedos, à altura dos lábios, ao alcance do ouvido. Para senti-la é preciso estar a olho nu, despojados de pressas, desapegados das lidas, desalojados das bardas, desanuviados das teimas. Nesses derradeiros e búdicos dias de maio, saiamos do casulo de conforto, da oca de certezas, da crisálida dos lares, rompamos o umbral dos desejos, e deixemos que os olhos penetrarem, livres de vontades, o pomo dos mistérios montanhosos e sintamos – por um instante que seja – este pertencimento rochoso, etéreo, vago, eterno sentinela da nossa mais pura fragilidade.
Joel Gehlen
Publicado dia 24/05/2010 no Jornal Notícias do Dia

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