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quinta-feira, 6 de maio de 2010

Carta para Kenzo

Andava por aqueles dias com uma fadiga permanente. Travava uma dura batalha contra a hepatite e, para salvar o fígado, meu corpo inteiro tinha de morrer um pouco. Perdi 20 quilos, a força, os cabelos. Mas a vontade, resistiu. A vontade de atravessar a longa noite de 365 dias. Eram 4 comprimidos de Ribavirina por dia e uma injeção de Interferon – que eu mesmo me aplicava – por semana, sempre às quartas-feiras. Era para ser uma coisa simples: encontrar um pedaço de couro macio na perna, limpar o local com algodão embebido em álcool, e enfiar a agulha com a seringa inclinada para não pegar no músculo, então injetar seu conteúdo até o final. O efeitos colaterais são irresistíveis, crescentes e acumulativos.
A primeira aplicação foi um vexame. Retirei o medicamento da geladeira, ajeitei-me em uma cadeira, o algodão com álcool, a picada, mas não consegui aplicar. Resmunguem qualquer coisa, fui pra lá, vim pra cá, mas acabei descendo o morro para a aplicação em uma farmácia. Dali para frente, firmei o pulso e não precisei mais recorrer a farmácias. Embora, com a candente perda de peso e a reincidência das picadas, o local ficasse roxo e dolorido. Paciência.
A primeira aplicação foi no dia 4 de fevereiro de 2008, dali a 9 dias você nasceu, em 13 de fevereiro. Ou seja, tudo que estava por vir, viria com você. Faço este preâmbulo para contar daquela noite. Você acordava quatro, seis, vezes por noite e nos revezávamos – eu e sua mãe – no atendimento. Ela dava de mamar e depois você vinha para meu colo até voltar a dormir. E isso podia levar 15 minutos ou duas horas. Embalava-o mais com músicas de cabaré que com canções de ninar. Exaurido, muitas vezes dormia sentado, contigo no colo.
Naquela noite a fadiga estava especialmente presente: uns sintomas de gripe, calafrios, uma febre constante, as juntas doídas , os ossos mal sustentados. E quedê de Kenzo dormir. Muitos nanas-neném em ritmo abolerado, mas, ao deitá-lo no berço, punhas os braços para cima e um sorriso nos lábios, um desenho sutil, uma discretíssima inclinação das terminações do risco da boca, um arqueamento na tez, uma luz nos olhos. Extrema sutileza de efeito tão soberbo. Aquele teu mínimo sorrir fazia esquecer a dor, a canseira, o sono. Enfrentava mais uma sessão de bolero, iluminado e feliz: encantado ao lado seu.
Publicado dia 03/05/2010, no jornal Notícias do Dia, por Joel Gehlen.

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